Entrevista de Por Raquel Martins A Ricardo Antunes
Ricardo Antunes O sociólogo e investigador na Universidade de Campinas, Brasil, diz que os trabalhadores estão confrontados com um enigma de difícil solução: o trabalho precário ou, do outro lado, o problema do desemprego.
O investigador brasileiro, que há 40 anos estuda os fenómenos ligados ao trabalho, alerta que o trabalho precário e informal, que devia ser uma excepção, passou a ser a regra. Um fenómeno global que está a alterar a morfologia do trabalho e a influenciar a intervenção social dos trabalhadores.
Ricardo Antunes, que esteve em Portugal em meados de Setembro para apresentar o seu livro Os Sentidos do Trabalho, Ensaio sobre a Afirmação e a Negação do Trabalho (Editora Almedina), alerta que as empresas estão cada vez mais divididas por várias partes do mundo e têm trabalhadores estáveis e precários (subcontratados, trabalhadores independentes ou em part-time), o que dificulta a sua acção. É por isso que, defende, é tempo de lutas à escala global.
O sociólogo foi militante do Partido dos Trabalhadores (PT) durante 20 anos, mas não poupa críticas ao "castelo de cartas frouxas criado pelo Governo" e que começou a dar sinais de estar a desmoronar-se com as manifestações de Junho passado em várias cidades brasileiras.
Quando lançou o livro Os Sentidos do Trabalho no Brasil, há 14 anos, alertava que estava a caminhar-se para uma realidade em que o trabalho informal e precário seria a regra. A sua tese acabou, de certa forma, por se confirmar. Essa realidade veio para ficar?
Vivemos uma mudança profunda. A excepção - o trabalho informal, terceirizado, freelancer - torna-se crescentemente regra. Infelizmente, a relação contratual dotada de direitos, onde o trabalhador e a trabalhadora entravam para um emprego numa perspectiva de aí ficar longo tempo, praticamente desapareceu.
Se fossem relações flexíveis de trabalho com direitos, com segurança, mas não. O problema é que a noção de flexibilidade traz embutido o desmantelamento dos direitos do trabalho nas diversas partes do mundo.
Se a regra segundo a qual o trabalho é um custo e como todo o custo tem que ser reduzido se mantiver, entramos num novo patamar de precarização estrutural do trabalho em escala global.
Essa precarização é um problema mais visível nas economias desenvolvidas?
Se olharmos para o mundo asiático, é a lei da selva; se olharmos para o mundo latino-americano, é a lei da informalidade. Em meados de 1990, 60% da força do trabalho do Brasil estava na informalidade.
Diz-se que na Alemanha praticamente não há desemprego. Mas, se analisarmos os dados do Eurostat [o organismo de estatísticas europeu], concluímos que os homens alemães estão a perder o emprego a tempo inteiro e a aceitar empregos parciais, onde normalmente predominam as mulheres. É verdade que os níveis de desemprego são reduzidos, mas houve precarização das condições de trabalho.
Temos depois o caso de Portugal, com um largo contingente de jovens sem perspectivas, ou o caso espanhol, que é explosivo. Para não falar dos emigrantes que são hoje a ponta mais visível da precarização do trabalho à escala global.
Estamos condenados a que o trabalho contratualizado e, de certa forma, regulado desapareça?
Não estamos condenados, se resistirmos e se lutarmos. Uma empresa, seja ela pequena ou uma grande multinacional, tem que funcionar numa lógica de racionalidade, ou seja, quanto menos custos tiver, melhor. E como é que ela reduz custos? Cortando nas despesas desnecessárias, mas fundamentalmente cortando no trabalho.
Em 1995, chegámos a ter no Brasil um milhão de trabalhadores bancários. Hoje temos 400 mil, mais 400 mil invisíveis que trabalham em call-centers ligados aos bancos. São tendências mais ou menos mundiais. Onde há sindicatos mais fortes, essas mudanças demoram. Infelizmente a excepção tende a ser a regra e a regra - o trabalho contratualizado e estável - tende a a ser a excepção.
O discurso empresarial é que terceirizando [expressão que significa a contratação de serviços externos a terceiros], a qualidade do serviço é melhor. Isso é falso, trata-se de um discurso puramente ideológico. A terceirização tem dois objectivos: a redução de custos e dividir os trabalhadores.
As empresas têm cada vez menos trabalhadores estáveis e têm várias modalidades de contrato (em part-time, contrato por tempo determinado) pautadas por regras de informalidade, que é o espaço da precarização mais acentuada. É o melhor dos mundos para a empresa e o pior dos mundos para a classe trabalhadora. Quando os trabalhadores estáveis param, os precários fazem o trabalho. Quando os precarizados param, os estáveis fazem o trabalho.
Na lógica actual, não faz mais sentido ter uma fábrica com 20 mil operários, porque se param não há nada a fazer. O ideal é ter várias fábricas com 500 trabalhadores, espalhadas pelo mundo e utilizar forças de trabalho mais baratas.
Significa que o valor do trabalho também tem vindo a degradar-se, com esta nova morfologia da empresa e do próprio emprego?
O valor do trabalho foi completamente destruído porque ele tornou-se uma mercadoria. Uma das conclusões fortes do meu livro é a seguinte: o trabalho que estrutura o capital desestrutura a humanidade, e o trabalho que estrutura a humanidade desestrutura o capital. Esse é o enigma do século XXI.
Mas se, por um lado, ter um trabalho precário é mau, estar no desemprego não será pior?
O trabalho é uma dialéctica rica. Se estou desempregado, o meu primeiro sonho é voltar a trabalhar. Mesmo o trabalho assalariado, informal, precarizado, é um flagelo menor do que o desemprego. Se tenho um emprego bom e com direitos, quero um que me pague melhor. Se tenho um emprego precário, luto para melhorá-lo.
O trabalho é alienação, sofrimento, fetichismo, coisificação, mas também é simultaneamente criação, felicidade. Miguel Ângelo, quando está a pintar ou a esculpir, tem dias em que quase que está a desempenhar um trabalho manual penoso. Mas quando olha a obra e ela fala é um momento catártico da criação. Mesmo um trabalho sublime como o do artista tem sofrimento.
Karl Marx é um autor magistralmente actual. Com 26 anos, este jovem constatou que, se pudesse, o trabalhador, e eu acrescentaria a trabalhadora, fugiria. Se pudessem, os trabalhadores e as trabalhadoras fugiriam do trabalho como se foge de uma peste. Mas se saio do trabalho infernal e vou para o desemprego infernal, então eu quero voltar ao trabalho infernal.
De que forma a precarização e o recurso ao outsourcing influenciam o exercício da cidadania e a conciliação da vida profissional com a pessoal?
Não importa se é belo ou infernal, o trabalho é vital para o trabalhador, para o mundo e para o capitalismo. É o trabalho que gera a riqueza, não é a máquina. Quanto muito, a máquina potencia a riqueza. Se esse trabalho é depauperado e degradado, a base sobre a qual se ergue a actuação do indivíduo enquanto ser social está comprometida.
Quem não tem assegurado no espaço laboral nem um traço de dignidade, nem um traço de certeza, mas só incerteza e risco, nem um traço de longevidade, como poderá exercer a cidadania? A tendência é a diluição dos laços do trabalho, e isso afecta os laços que transcendem o trabalho.
Sou muito crítico. O meu optimismo decorre de uma outra coisa: entramos numa nova era de lutas sociais e de classe à escala global.
Mas que lutas são essas? Como é que se mobilizam as pessoas que estão divididas e dispersas e, ainda para mais, em situações laborais instáveis e precárias?
Estamos numa fase de lutas sociais globais espontâneas, estamos numa luta de ocupação das praças públicas. Há um fosso entre a luta social e as representações políticas tradicionais.
Em São Paulo, o que originou a rebelião de Junho foi o aumento dos transportes colectivos. O mito brasileiro começou a ruir. Fui do Partido dos Trabalhadores (PT) durante 20 anos, mas sou um crítico muito duro do Governo do PT que criou um castelo de cartas frouxas e elas começaram a cair.
Na Alemanha, as lutas são diferentes. Os trabalhadores têm que lutar por um emprego que há 20 anos era feito pelo imigrante. São formas distintas de revolta.
Referiu o fosso entre a sociedade e as representações democráticas. Não há também um fosso em relação aos sindicatos?
Há. A nova morfologia do trabalho criou trabalhadores que não têm qualquer experiência sindical, como os que trabalham em call centres ou no comércio. [Friedrich] Hayek e [Milton] Friedman, os grandes teóricos do neoliberalismo, já diziam no pós-Segunda Guerra que o grande inimigo do capitalismo eram os sindicatos. Existe uma insidiosa política de desmantelamento do sindicato de classe. Aceita-se o sindicato parceiro, mas rejeita-se o sindicato combativo.
Por outro lado, a classe trabalhadora mudou. É mais feminina, mais jovem, mais precarizada, mais terceirizada, mais emigrante. O sindicato era representante de uma classe trabalhadora masculina, estável e herdeira do welfare state. Os sindicatos não conseguem responder a esta mudança de forma rápida. O sindicalismo é vertical e institucionalizado porque a empresa também era vertical e institucionalizada. Hoje a empresa estende-se em rede e tem trabalhores e trabalhadoras estáveis e precários. Os sindicatos vivem um momento difícil, a base mudou profundamente e há uma política dura anti-sindical.
Podemos ter no século XXI um sindicato de cúpula, que defende uma minoria, ou recuperar um sindicalismo de classe e de massa que compreenda a nova morfologia do trabalho. O sindicato tem que entender a nova morfologia do trabalho para que possa representar o novo desenho da classe trabalhadora. Não houve o fim da classe trabalhadora, temos é que entender quem é o jornalista hoje, o bancário, o operador de call-center, o trabalhador de fast-food, quem são os imigrantes.
FONTE jornal Publico de ontem