"Joaquim Coimbra sustenta que o trabalho como valor de troca vai desaparecer e que esta crise deveria servir para nos pôr a discutir um novo paradigma social.
Joaquim Luís Coimbra, 57 anos, docente da Faculdade de Psicologia e Ciências da Universidade do Porto, tem baseado a sua investigação na área do desenvolvimento psicológico e social dos jovens e na educação e formação de adultos. Sustenta que os jovens não estão deprimidos com o desemprego porque, ao contrário dos mais velhos, não foram sociabilizados para terem no trabalho um "imperativo moral". E lembra que, sob a actual crise social e económica, se esconde outra, mais funda e que, mais cedo ou mais tarde nos há-de obrigar a repensar a nossa relação com o trabalho sob a forma de emprego com valor económico.
O Eurostat diz que a taxa de desemprego jovem em Portugal chegou aos 36,6%. Os jovens estão deprimidos?
J. C: Preocupados, com certeza, mas não diria deprimidos. Essa associação geral entre desemprego e um humor mais depressivo e mesmo depressão verifica-se com pessoas da meia-idade e por aí adiante. Os jovens não estão deprimidos, até porque têm o apoio das redes sociais e da família, e, por outro lado, o desemprego é tão comum, tão normativo entre eles que não o sentem como um estigma. Nas gerações mais velhas, sim, estar-se desempregado é estigmatizante e desqualificante.
Se considerarmos que a maioria das pessoas se baseia naquilo que faz para construir a sua identidade pessoal e social, que peso tem o "efeito desemprego" na forma como os jovens se relacionam socialmente?
J. C: De facto, uma base da construção da identidade - pessoal e social - nas nossas sociedades é a nossa relação com o trabalho. Mas, contrariamente àquilo que se pensa, esta relação com o trabalho, como forma de emprego e de actividade produtiva, não é uma variante da história da humanidade: é uma invenção do século XIX. Já nem me refiro ao facto de o trabalho ser um objecto de profundo desprezo na Grécia Clássica e na cultura romana, nas quais aos cidadãos competiam actividades nobres, da relação com as artes, com a filosofia e com o governo das cidades. Foi a I Revolução Industrial que nos transformou em trabalhadores produtivos e em empregados sob conta de outrem. Mas agora surgem fenómenos novos que têm a ver com a globalização e com uma nova divisão mundial do trabalho e da produção. Esta profunda crise europeia também se deve à perda de capacidade competitiva da Europa em relação a outras economias emergentes do planeta e a Europa não vai continuar a produzir e a ser competitiva nas áreas em que tem sido até agora. Portanto, esta divisão do trabalho, da economia e da produção origina desemprego para os nossos lados. Além disso, convém lembrar - e isso é das poucas coisas que podemos tomar como certas - que o desenvolvimento da tecnociência é imparável e permite produzir cada vez mais bens e serviços com cada vez menos trabalho humano. E isso, a constatação de que não vivemos em sociedades de pleno emprego, é algo que estranhamente está fora do discurso político, o que não ajuda as pessoas a encontrarem uma nova forma de acomodação na sua relação com o trabalho.
Deveríamos estar a aproveitar esta crise para procurar um novo paradigma?
J.C: O que deveríamos estar a questionar é a continuação do trabalho como valor de troca, sob a forma de emprego com valor económico. Claro que nem se põe em causa a necessidade de políticas activas de emprego, mas não nos podemos esquecer que, mesmo quando houver uma retoma e um crescimento do PIB, isso não se vai traduzir nas expectativas clássicas de criação de emprego. A produtividade de hoje é o triplo da que era nos anos 1970! E não podemos continuar a ignorar que as nossas sociedades se tornaram estruturalmente excludentes, isto é, para se manterem neste equilíbrio precário, produzem cada vez mais lixo social e cada vez mais exclusão que está a atingir cada vez mais camadas da população. Os jovens, por exemplo, não eram tradicionalmente uma camada da população que fosse atingida por isto. E, voltando um pouco atrás, lembro-lhe que a nossa relação com o trabalho, embora seja básica e fundamental na construção da nossa identidade, também já se alterou há muito tempo. Há quase 100 anos, o colapso do sistema financeiro, naquela sexta-feira negra de 1929, levou a uma crise económica e social profunda, tanto na América como na Europa, que acabou por estar na base da II Guerra Mundial. E essa crise, mais do lado norte-americano, teve uma resolução bastante rápida, tão rápida que, durante a II Guerra Mundial, passado pouco mais do que uma década, os americanos estavam a salvar a Europa da sua própria autodestruição e, depois, a financiar a sua reconstrução. Portanto, a crise resolveu-se muito rapidamente na América do Norte e teve três protagonistas importantes: o presidente Roosevelt, [John] Keynes, como economista, e [Henry] Ford, como empresário. Ora, Ford, para além de ter aderido ao apelo de Roosevelt para aumentar o salário dos trabalhadores em plena crise, pensou uma coisa do género "Os operários da minha fábrica têm que ter capacidade para comprar o produto que fabricam", o Ford T, e, de facto, o valor de produção baixou de tal maneira que os operários se tornaram capazes de comprar o automóvel. E isto é simbólico, mas não é só simbólico, porque foi aí que passámos do estatuto de trabalhadores para o de consumidores. Hoje em dia, e para voltar à questão dos jovens, é mais importante estar dentro do circuito do consumo do que do trabalho.
E o facto de estes jovens não estarem no circuito trabalho põe em risco o seu lugar no circuito do consumo, a não ser que pensemos que as famílias vão poder continuar no seu papel de financiadores.
J.C: De facto, as famílias são as grandes financiadoras destes adultos emergentes, que são uma nova categoria social e psicológica de jovens, e desta crise social e económica - e não falo da crise actual originada pela divida e pelo défice em Portugal, mas de uma crise mais profunda de reorganização das nossas sociedades. Não havendo espaço social para estes jovens, porque o mercado do primeiro emprego não funciona ou funciona de uma forma débil, fraca e lenta, o grande financiador do problema são as famílias que vão mantendo estes jovens nos circuitos de consumo. E, apesar de tudo, há políticas sociais que vão pondo na mão destes jovens algum dinheiro que também ajudam a que se mantenham no estatuto de consumidores.
Mas a que saídas podem os jovens aspirar?
J.C: Essa questão tem a ver com as determinantes mais imediatas da crise, que é capaz de se aliviar um pouco dentro de alguns anos. Mas as causas mais profundas vão permanecer e essas têm a ver com o facto de não precisarmos de tanta gente no emprego. Julgo que poderemos chegar a um ponto, não sei se daqui a 20, se daqui a 100 anos, em que apenas 10% da população será necessária para prover todas as necessidades de bens e serviços. É um bocado como naquela representação da unidade produtiva do futuro, que funciona 24 horas por dia, 365 dias por ano, controlada electronicamente e que tem como mão-de-obra um engenheiro e um cão, e o cão é para impedir que o engenheiro faça alguma coisa. Isso é anedótico, mas dá-nos a representação do que é que pode ser um futuro em que a humanidade se libertará da condição de ter que lutar diariamente pela sobrevivência, e em que trabalharemos não para o negócio mas para o ócio. Isto é especulativo, mas parece-me mesmo que, mais tarde ou mais cedo, teremos que estar a repensar todas as bases em que a nossa sociedade está organizada.
Até lá como é que esta geração se encaixa?
J.C: Com muitas dificuldades, com muitas adversidades, com muita escassez de oportunidades, os jovens vão encontrando maneiras de lidar com isto de forma criativa. Claro que a transição da formação para o emprego é muito mais lenta, passa por muito mais vicissitudes, é um itinerário feito de muitas mais descontinuidades e alternâncias, mas os jovens vão-se integrando. E na psicologia destes jovens adultos não há sinais de que haja mais insatisfação. Eles têm consciência dos problemas, evidentemente, mas também têm consciência das potencialidades. É a geração mais qualificada de sempre e, portanto, a mais equipada. Mas não quero cair na leviandade do discurso sobre o empreendedorismo a qualquer custo, porque o que se passa é que estes jovens com qualificações de nível superior vêem-se muitas vezes obrigados a aceitar propostas muito precárias e até insultuosas de vencimentos de 400 euros. E não vemos políticas activas de emprego nem nada que promova um capital de esperança para que estes jovens continuem a persistir na procura de um emprego estável, mas, enfim, dá-me a ideia de que a sensatez deles é superior à dos nossos políticos.
A percentagem de jovens que vive em casa dos pais é muito elevada em Portugal, em comparação com a média Europeia. Isso decorre da acomodação dos jovens ou do facto de verem a sua vida em suspenso por causa da dificuldade em obterem emprego?
J.C: Nós temos números mais elevados porque somos mais pobres e estamos a empobrecer muito rapidamente mas esse é um fenómeno transversal a toda a cultura Ocidental, quer do lado de cá do Atlântico quer do lado de lá. O mercado de trabalho transformou-se de tal maneira, tornou-se tão instável, que não permite qualquer base segura para construir projectos de futuro. Hoje em dia os jovens têm dificuldade até em alugar uma casa quanto mais comprar. Mas isso é um problema geral da Europa.
Mas este ficar não é contaminado também por alguma preguiça ou comodismo, no sentido em que não estarão dispostos a abdicar de para ganharem autonomia?
J.C: Não diria isso. E não é isso que a investigação, nomeadamente a feita em Portugal, diz. Eles ficam porque são forçados a ficar. Porque os que têm alternativa saem e por isso é que está a aumentar também o número de jovens que vivem sozinhos. Agora, não temos as políticas sociais da Dinamarca que ainda consegue dar quase automaticamente a um jovem que sai da casa dos pais um subsídio para ele ter um mínimo de autonomia económica e financeira. Mas não é por terem um hotel de cinco estrelas com preços muito económicos que eles ficam em casa dos pais. E, por outro lado, também é verdade que a família portuguesa está muito mais democrática, aquela expressão "Enquanto estiverem em casa sou eu que mando" já não funciona, os pais têm tendência a respeitar os projectos dos seus filhos, os seus estilos e o padrão de vida que têm, a maneira como gerem o tempo e a sua privacidade, e tudo isto cria condições para que o ficar em casa não seja uma experiência tão dolorosa para os jovens. É uma experiência por default, mas, apesar de tudo, não é tão dolorosa quanto isso para os jovens. Se o for é para os pais que estão a financiar isto tudo.
Continuando com esta geração no seu divã, acha que ela, fruto das circunstâncias, já encontrou novas formas de socialização ou continua a digerir essa sensação de não encaixe?
J.C: Está a encontrar, em sociedades extremamente individualizas. E sociedades individualizadas quer dizer que são sociedades em risco, nomeadamente de exclusão, e em que podemos estar entregues a nós próprios, nomeadamente em momentos de dificuldades em que nem sequer o nosso vizinho do lado nos acode. Portanto, há uma fragmentação, uma erosão dos laços sociais e um desaparecimento até da ideia de comunidade. Mas o outro lado dessa moeda é um lado interessante: é que a margem de manobra, sobretudo destes jovens, para governarem as suas vidas e para se transformarem naquilo que querem nunca foi tão grande como hoje. O peso das normas sociais diminuiu muito e hoje os jovens definem-se e à sua identidade pelo estilo de vida que adoptam.
E tudo isso é uma reacção saudável a este quase estatuto de lixo social de que falava há bocado?
J.C: É uma das faces da moeda. A face em que as pessoas têm maior autonomia e margem de manobra para, individualmente, escolherem e governarem a sua vida. Em consonância com aquela expressão que faz parte de uma emenda à Constituição dos Estados Unidos, "the right to be left alone", as nossas sociedades são menos normativas e menos disciplinares do que eram no passado, e, hoje em dia, as pessoas têm direito de ser o que lhes apetece. As pessoas até dizem que respeitam a liberdade de escolha da orientação social - ora ninguém escolhe a orientação sexual, ela é resultado de um processo muito mais complexo - mas isso é visto como uma escolha e é respeitado.
Como imagina daqui a uma década esta geração que está agora entre os 25 e os 30 e poucos anos e a lutar por se inserir?
J.C: Se calhar como está hoje a geração dos anos 60 que fez o Maio de 1968 ou o flower power nos Estados Unidos e que está hoje a chegar à terceira idade. Esta geração pode ter que levar mais tempo, e se calhar até que pagar mais, para chegar à vida adulta na sua plenitude, com todas as suas responsabilidades e com todos os seus papéis reconhecidos socialmente. Mas vai lá chegar e vai ter que assumir mais tarde ou mais cedo a responsabilidade pelo mundo, como as gerações anteriores também assumiram.
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