Entrevista
de Ana Rute Silva a João Paulo Pereira,
presidente da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, que
saiu no Publico no dia 30.12.13, como título “As condicionantes socioeconómicas mundiais estão a retirar lucidez aos
empresários”
João Paulo Pereira, presidente da Associação
Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional, diz que o contexto actual leva
os gestores a reagir, em vez de agir. E, nas empresas, os trabalhadores estão à
beira de um ataque de nervos.
Exaustão, cansaço profundo, desmotivação. Um estudo recente da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional (APPSO) revela que cada vez mais os trabalhadores portugueses encaram o trabalho como uma mera tarefa para ganhar um salário. João Paulo Pereira, presidente da associação e professor no Instituto Superior da Maia, diz que há um “medo generalizado”, que adia a tomada de decisões importantes, de mudança de vida. Ao mesmo tempo, começa-se “de forma algo preocupante, a olhar para questões que envolvam os trabalhadores não como investimento, mas como despesa”.
Exaustão, cansaço profundo, desmotivação. Um estudo recente da Associação Portuguesa de Psicologia da Saúde Ocupacional (APPSO) revela que cada vez mais os trabalhadores portugueses encaram o trabalho como uma mera tarefa para ganhar um salário. João Paulo Pereira, presidente da associação e professor no Instituto Superior da Maia, diz que há um “medo generalizado”, que adia a tomada de decisões importantes, de mudança de vida. Ao mesmo tempo, começa-se “de forma algo preocupante, a olhar para questões que envolvam os trabalhadores não como investimento, mas como despesa”.
A APPSO analisou quase 33.900 casos
de trabalhadores ao longo de três anos. E concluiu que cada vez mais os
portugueses encaram o seu emprego como forma de apenas obter um salário no
final do mês. Porquê tanta insatisfação no trabalho?
Pelo que podemos ver nos resultados que temos obtido, existe por parte dos
portugueses uma fraca percepção da forma como se dedicam às suas tarefas e como
são recompensados. Há aqui alguns problemas do ponto de vida do reconhecimento
salarial, com todo o aumento da carga fiscal e com as contribuições de
solidariedade. Toda a dinâmica do trabalho e da implicação das pessoas na
organização passa a ser muito mecanicista. Trata-se de atingir um objectivo
que, muitas vezes não é o objectivo da tarefa per si, mas sim o de conseguir
chegar ao fim do mês e sobreviver.
Que consequências é que isso tem?
Há implicações a vários níveis, nomeadamente, na saúde física e mental e a
nível da disponibilidade das pessoas. Mediante uma situação mais instável da
economia e das empresas (que precisam de mais esforço dos seus trabalhadores
para conseguir ultrapassar barreiras), as pessoas não estão disponíveis. E não
falo de tempo.
Não estão disponíveis mentalmente para esse esforço?
Sim. As próprias organizações têm, depois, francos problemas porque dependem
das pessoas e da sua disponibilidade.
O problema não é a inexistência de um aumento salarial?
Não. Por um lado, é o reconhecimento salarial pela função, por outro pela
execução do trabalho. Hoje em dia com o aumento dos índices de desemprego,
cai-se numa estratégia que nunca é boa na gestão da carreira, na motivação e na
forma como atingem os objectivos. Há um medo generalizado de não conseguir e as
pessoas adiam sine die decisões a tomar sobre a sua vida.
Fazem tarefas nas quais não se reconhecem e o que obtêm como reconhecimento não
é compensador. Quando olhamos para as organizações e vemos que um conjunto
grande de pessoas estão nesta posição – felizmente não são todas – reduz-se
quase a questão ao nível salarial, quando não o é.
Quando o trabalhador aborda o empregador e fala sobre a
desmotivação que sente, estão a ser usados argumentos como “a tua sorte é teres
trabalho”?
Infelizmente, cada vez mais. E cada vez mais há um receio da parte dos
trabalhadores de colocarem em causa o que fazem. Vemos isso no comportamento
das pessoas e no que são algumas das despesas indirectas com o trabalho, como o
absentismo. Não está a crescer de forma tão drástica como antes. Não quer dizer
os trabalhadores não tenham razões para faltarem. Mas dadas as variáveis e a
envolvente social, e a diminuição das comparticipações sociais, trabalha-se em
piores condições de saúde. Se se avança para a baixa médica, no regresso há um
problema para resolver. Eventualmente o posto de trabalho foi ocupado.
Podemos também falar em investimento em acções de formação ou
iniciativas que envolvam os colaboradores no que é a cultura da empresa. Hoje
começamos, de forma algo preocupante, a olhar para questões que envolvam os
trabalhadores não como investimento mas como despesa.
Esse discurso repetido de que é preciso baixar salários e de que
o trabalhador é um custo imenso para a empresa deita, ainda mais, abaixo a
motivação?
Neste momento corremos o risco de cair numa dicotomia quase egoísta, em que
cada um olha para si. Por um lado, as empresas sabem que têm um conjunto de
pessoas disponíveis para trabalhar.
Facilmente podem substituir trabalhadores?
Exactamente. As organizações têm um investimento imenso quando colocam alguém
novo. Mas havendo um mercado disponível de recursos humanos, o custo baixa. Do
lado dos trabalhadores, isto faz com que adiem decisões e impede-os de fazerem
o seu balanço pessoal, quase como uma análise SWOT, onde elencam as ameaças e
oportunidades [SWOT é uma análise de Forças, Fraquezas, Oportunidades e Ameaças].
Se o fizessem seriam muito mais produtivos, mais felizes, dariam muito menor
despesa ao Estado.
Fazendo uma análise dessas, teriam de tomar decisões.
O problema é mesmo esse. Não é por acaso que assistimos à contínua subida do
consumo de antidepressivos e ansiolíticos. Olhando para 2013, os
antidepressivos aumentam mais porque muitas pessoas têm de optar apenas por um
destes medicamentos.
A crise é o principal motivo para esta infelicidade?
A troika não
é responsável por isto. Não é a crise em si. É evidente que é um factor que
potencializa um aumento. Mas quando olhamos para trás, verificamos que o
consumo de antidepressivos e ansiolíticos já estava a aumentar. E ganha
significância estatística a partir do momento em que se colocam em causa os
modelos do trabalho e quando chegam a Portugal os novos modelos.
Refere-se à flexibilidade laboral?
Sim. E uma maior exigência de adaptação das pessoas, que passam a estar num
permanente desafio face às suas competências. Já não há emprego seguro e o
próprio espaço de trabalho mudou. Cada vez mais há mais empresas a trabalhar em open
office, em escritórios virtuais, em sistemas em que o trabalhar
chega e não tem a sua secretária definida. Mesmo que em Portugal estejamos a
falar de pequenas e médias empresas. O grande impacto acaba por ser nesta
alteração na filosofia de trabalho que visa uma redução de custos na parte da
produção e logística, mas por outro lado, uma mudança na perspectiva cultural
do trabalho. Muitas vezes quando perguntamos a alguém o que faz a resposta é:
“Não estou a trabalhar na minha área”. Antes havia a expectativa de nos
aproximarmos mais da nossa área através das competências profissionais que
íamos demonstrando, do nosso envolvimento com o trabalho, da produtividade nos
seus vários índices, da energia. Esta é uma variável importante no nosso estudo
- é o tal quilómetro extra que por vezes é preciso fazer nas organizações.
Nesta matéria, coloca-se a questão da pertinência, ou não, das 40 horas
semanais de trabalho. Os estudos dizem-nos que a maior produtividade é atingida
entre as 25 e as 30 horas semanais.
O que é que 40 horas semanais acrescentam à produtividade?
As pessoas vão trabalhar mais tempo pelo mesmo quantitativo em termos do que é
a negociação laboral que têm. Será que vai resultar? Os estudos dizem-nos que
não. A perspectiva é olhar para as organizações através das pessoas. Quando são
pensadas, todas as empresas são perfeitas. Ao colocarmos pessoas, colocamos
diferentes formas de ver, de olhar os objectivos traçados. As organizações de
sucesso são as que conseguiram desenvolver uma capacidade de resiliência, e de
encontrar objectivos comuns. Falo de variáveis como o sentimento de comunidade
e de justiça que se traduzem no sentimento de que “vale a pena estar aqui”.
As empresas saudáveis são as que ouvem os seus trabalhadores?
Sim. Aliás, faz todo o sentido. Sabemos que o sucesso de gestão de pessoas
depende muito do que é o envolvimento (engagement),
o compromisso assumido num objectivo comum, que é o sucesso de ambos: uma
relação em que todos ganham no estabelecimento da parceria. Organizações
saudáveis são as mais produtivas, as que têm menores índices de turnover
[rotação de pessoal], onde existem os mesmos problemas do que nas outras
empresas mas têm estratégias para lhes fazer face.
Como é que avalia as empresas portuguesas? Aparentemente, e
tendo em conta os resultados do estudo, não são assim tão saudáveis.
Não são saudáveis. Quando digo isto, não quer dizer que seja uma
responsabilidade directa dos empresários. Estou a dizer que as condicionantes
socioeconómicas mundiais estão a retirar alguma lucidez aos empresários para
conseguirem perceber o que podem fazer, para agir em vez de reagir.
O foco tem sido sobreviver para continuar a pagar salários.
É o reagir e não o agir. Mas se traçarmos um plano realista face ao cenário que
temos é mais fácil criar alternativas. O que é necessário, neste momento, é que
haja um plano A, um B e um C. Se houver, existe uma sensação de controlo por
parte de quem tem a responsabilidade de gestão. Esses planos têm de ser do
conhecimento das pessoas. Muitas vezes, neste mecanismo de reacção, ainda se
pede mais dos colaboradores. É interessante olhar para os índices de acidentes
de trabalho e os incidentes – que geralmente não valorizamos mas que potencialmente
poderiam vir a ser acidentes. Quando as pessoas se envolvem menos, facilitam
mais, andam com o arnês mal colocado ou sem o capacete. As pessoas estão a
reagir e não se preparam para a acção.
Os trabalhadores portugueses estão a atingir níveis preocupantes
de exaustão laboral?
Diria que os trabalhadores portugueses estão à beira de um ataque de nervos. As
pessoas motivadas cansam-se tanto como as outras. A diferença é no tempo de
recuperação. Uma boa noite de sono ou um fim-de-semana bastam para recuperar.
Quando analisamos o burnout, por exemplo, há uma
variável protectora que é a da “realização”: independentemente de eu estar mais
ou menos realizado, sinto que o que faço é reconhecido. Podendo até não ser um
trabalho da minha área. Mas quando vemos que os índices de realização estão a
baixar e as pessoas estão cada vez mais cansadas, quando se levantam de manhã
em vez de dizerem: “Que bom vou trabalhar”, dizem “que aborrecimento, vou
trabalhar”.
Um fim-de-semana ou uma boa noite de sono já não são
suficientes?
Não. Nas redes sociais até é visível. O dia de felicidade no fim-de-semana
agora é o sábado. Estamos reduzidos a 24 horas. Sexta-feira ainda se trabalha,
mas é o dia de preparação para a felicidade: começamos a ver posts engraçados no final do dia, com o
Garfield a sorrir. No Domingo, o Garfield está triste pela antecipação da
segunda-feira. Reduzimos a nossa capacidade de energia de bem-estar e de
qualidade de vida a um dia por semana. Fazendo esta redução estamos a colocar
em risco a energia que teremos para o resto dos cinco dias de trabalho. Além
disso, cada vez mais e em mais situações esta questão da divisão da semana em
cinco dias de trabalho e dois de descanso deixa de existir. Os jornalistas e os
professores são bons exemplos disso. Dou aulas há 20 anos e cada vez mais ao
fim-de-semana trabalho. Para uma boa parte das pessoas, o fim-de-semana e as
férias já não são sinónimo de descanso. Quantas vezes não levamos o telemóvel
connosco, sempre contactáveis e com acesso ao e-mail? Aqui estão as tais
variáveis da mudança da filosofia do trabalho. O trabalho está pensado de outra
forma, mas como é que nos adaptámos a isto?
As novas tecnologias podem ser usadas a nosso favor?
No limite sim. Mas há uma variável que estraga isto: o tempo. Ele não estica.
Teremos falta de tempo ou será que, com o tempo que temos, estamos a
organizá-lo pior? Fabricámos esta realidade mas ainda não nos adaptámos a ela
em termos culturais. Estamos numa zona cinzenta. E a isto se juntaram outras
variáveis que põem em causa a sobrevivência económica das empresas e, em
consequência, das pessoas.
A crise surgiu, assim, numa altura de mudança profunda no
trabalho, e de disseminação de novas tecnologias. É tudo isto junto que traz
infelicidade?
Sim, mas eu não conheço no mundo nenhum povo tão fantástico como os
portugueses. Nas suas competências, na sua capacidade adaptativa, resiliência e
esforço. Nós cumprimos como mais ninguém, somos espectaculares. É preciso
fazer, fazemos. Estamos a viver uma situação económica e social complexa. Penso
que não é uma crise, é uma mudança de paradigma. Nada será como dantes. Isto
implica todo um processo de adaptação e as pessoas terão de agarrar nas suas
várias áreas de vida e reajustarem-se. Somos fantásticos a fazer isso. O
problema é que este processo obriga a uma série de sacrifícios. E uma das
coisas que faz falta para os portugueses aproveitarem realmente as suas
capacidades é perceberem porque é que têm de o fazer. Penso que deixaram de
acreditar nas pessoas que explicam.
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