Artigo do psiquiatra PEDRO AFONSO no Publico de hoje:
Defendo que as praxes
devem obedecer a um código de conduta.
As mortes de estudantes da Lusófona ocorridas na praia do Meco e
o julgamento de ex-alunos do Colégio Militar foram notícias recentes associadas
a praxes académicas e que merecem alguma reflexão.
Começo por referir que fui
estudante de Medicina em Coimbra de 1987-1993, e fui praxado. Um dia por volta
da meia-noite quando regressava a casa, acabei por ser apanhado por um trupe de
alunos mais velhos. Foi aplicado o respectivo código da praxe (em Coimbra havia
um código da praxe com regras claras) e, atendendo às altas horas da noite,
impróprias para um caloiro, fui punido com umas tesouradas no cabelo. No dia
seguinte, embaraçado pelo estado ridículo em que ficara o meu cabelo, dirigi-me
a um barbeiro que havia na Praça da República, a quem chamávamos o “Pepe
rápido”; era assim conhecido, devido à rapidez com que cortava o cabelo.
Sentei-me e, quando ia dar uma explicação para a minha triste figura, o
barbeiro murmurou, num tom complacente: "Não se preocupe, hoje já é o
sétimo!..."
A minha experiência de praxe foi globalmente positiva. Em
Coimbra havia uma tradição de praxe académica, com regras, que servia para
integrar os caloiros, facilitando que os alunos de diferentes cursos se
conhecessem, e deste modo fossem criadas novas amizades. Mas confesso que, por
aquilo que tenho visto e lido, muitas das praxes atuais pouco ou nada têm a ver
com esse espírito.
Os rituais de praxe são realizados habitualmente em grupo, num
ambiente de grande excitação e exaltação colectiva. Neste contexto, os
mecanismos dos limites sociais estão enfraquecidos, criando-se condições para o
aparecimento de violência física ou psicológica, expressas através de humilhações
gratuitas. O perigo reside no risco de alguns veteranos apresentarem mentes
psiquicamente perturbadas, encontrando na praxe o ambiente propício para
expressarem as suas frustrações pessoais e agressividade, frequentemente com
contornos de perversão. Assim, a praxe passa a ser bullying. Muitas das praxes a que assistimos
podem ser considerados comportamentos de bullying, já que configuram atos intencionais de
agressão física ou psicológica que envolvem uma disparidade de poder entre os
agressores e as suas vítimas.
Como estas praxes ocorrem em idades mais avançadas,
comparativamente, por exemplo, com a adolescência, a violência dos rituais
torna-se não apenas mais sofisticada como também mais perigosa. Se juntarmos a
este fenómeno o fato dos rituais da praxe serem muitas vezes realizados sob o
efeito desinibidor do álcool (e por vezes drogas), a situação pode adquirir
contornos de grande gravidade.
Basta, portanto, que haja um individuo perturbado psiquicamente
a liderar um grupo de praxe para que os comportamentos possam adquirir
contornos de grande risco e violência. Porém, as perturbações mentais não
explicam tudo. Num artigo recente (2013) da revista científica International
Journal of Adolescent Medicine and Health, os autores concluem que
a evidência científica não suporta a ideia de que a maioria das ações cruéis
são intrinsecamente patológicas, no sentido de serem motivadas por perturbações
mentais. Por esta razão, apenas as regras morais e as ações legais (e não as
intervenções psiquiátricas) poderão dissuadir o ser humano desta forma de
crueldade.
Defendo, portanto, que as praxes – como grande parte dos
comportamentos sociais – devem obedecer a um código de conduta, devidamente
regulamentado, no qual deve ficar claro a proibição de rituais de humilhação
gratuita, bem como de condutas violentas que possam colocar em perigo a
integridade física dos caloiros ou susceptíveis de provocarem qualquer dano
psicológico. Além disso, deve ficar explícito que a praxe deve ser voluntária,
sendo que o seu objectivo principal é facilitar a integração dos novos alunos.
As regras da praxe poderão ser elaboradas entre os alunos e as respetivas
universidades, de forma a poderem ser punidos aqueles que desrespeitarem os
princípios da mesma.
A praxe deve ser discutida às claras e regulamentada entre as
partes, de modo a evitarem-se situações de bullying que são inaceitáveis em
sociedade e que devem ser repudiadas por todos nós.
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