O artigo de Luis Aguiar
Conraria que saiu no Jornal Publico a 10
de abril 19, com o título O privilégio
de se ser homem, heterossexual e branco:
"É chato fugir ao circuito
familiar. Mas de que adianta à esquerda enchermos a boca com a ética
republicana, se não combatemos as linhagens de sangue?
Há uns dias, um destacado intelectual de
esquerda mostrou-se perplexo com o falatório em torno das relações familiares
dos nossos governantes. Explicou que também no Reino Unido havia muita
endogamia e concluiu que em “Portugal, onde um grupo de 500 pessoas andou nas
mesmas faculdades, frequenta os mesmos restaurantes e tem a filharada nos
mesmos colégios, não faz sentido tal puritanismo”. Esta forma elitista de
justificar a endogamia tem a virtude de dizer aquilo que muitos pensam, mas que
têm vergonha de dizer: as elites não estão interessadas na mobilidade social.
Para a filharada dos outros subir no elevador social, os filhinhos das elites
têm de descer. Naturalmente, as elites protegem-se e perpetuam-se.
Num outro registo, como notou
Maria João Marques, a 27 de Março,
no Observador, esta endogamia tem a utilidade de mostrar que o
principal argumento anti-quotas de género, o de que as mulheres devem lá chegar
por mérito e não por quotas, é conversa fiada: já só um tontinho é que acha que
as nomeações e promoções políticas têm o mérito como primeiro critério.
Apesar de concordar com a
Maria João, há um ângulo que ela não explorou e que tem a ver com quais os
sacrificados quando se impõem quotas de género numa sociedade endogâmica. É que
é demasiado fácil para a elite impor quotas de género, parecendo que defende a
igualdade, quando sabe que os seus filhos não vão perder os seus lugares. Para
esses, como se vê, há sempre lugar. Com as quotas por género, abre-se caminho
às filhas das famílias que estão no círculo de confiança. Não só a essas,
claro, porque a nossa elite de 500 pessoas não é suficientemente grande, mas
também a essas. Quem perde são os filhos das outras famílias.
Mamadou Ba, negro, dirigente
do SOS Racismo e assessor do Bloco de Esquerda na Assembleia da República, manifestou
no mural do seu Facebook a sua frustração com a forma como a esquerda conduz este debate, ao não
reconhecer que a endogamia é incompatível com o ideal republicano: “Quem paga o
preço mais alto do nepotismo e da endogamia são obviamente os deserdados/as da
república, aqueles/as que não têm forma de construir teias de poder e, por isso
mesmo, dispõem de pouca ou nenhuma possibilidade de acesso. Entre os/as deserdados/as
da república estão, por excelência, os sujeitos racializados.” Tem razão. O
nepotismo e a endogamia tramam os mesmos de sempre: negros e ciganos na linha
da frente, como salientou Mamadou, mas também toda a massa de gente das
famílias erradas.
Como vários estudos demonstram, à medida
que o acesso à educação de qualidade se generaliza, as
elites encontram novas (AQUI) formas de se
protegerem (AQUI) Não surpreenderei ninguém ao dizer que a escolha das
escolas privadas é apenas uma dessas formas. Ou nunca acharam contraditório que
tantos políticos de esquerda defendam ardentemente a escola pública ao mesmo
tempo que põem as crianças em colégios privados?
Ainda este ano, os sociólogos ingleses
Sam Friedman e Daniel Laurison publicaram um livro onde
mostram que o efeito da classe de origem é persistente (AQUI) Os autores,
estudando com detalhe o caso do Reino Unido, mostram que, mesmo entre pessoas
da mesma profissão, quem vem de classes inferiores é prejudicado. Não estou a
falar da dificuldade para aceder a profissões de topo, falo dos que, vencendo
todas as barreiras, conseguiram lá chegar: com a mesma profissão, quem vem de
baixo ganha menos.
Aos filhos das boas famílias
basta ir com o vento: vão para a escola certa onde conhecem as pessoas certas,
fazem o primeiro estágio no sítio certo e aproveitam as oportunidades que
surgem. Os filhos da classe laboral têm sempre o vento contra, podem lá chegar,
mas demoram muito mais tempo num processo muito mais desgastante. Os autores
não negam nem os efeitos da etnia nem do género, mas mostram que a essas
barreiras há que acrescentar a classe. As várias discriminações reforçam-se
mutuamente: uma mulher negra de origens modestas, num emprego de topo, ganha
menos 20.000 libras do que o seu colega branco oriundo de uma classe
privilegiada.
Os autores analisam vários
casos, entrevistando empregadores e trabalhadores, e concluem que praticamente
ninguém tem consciência do seu privilégio de classe: atribuem tudo ao mérito.
Se fosse em Portugal, ainda diriam que eram prejudicados por serem filhos de
quem são, como Daniel Oliveira e Vieira da
Silva já explicaram. Aqueles que tantas vezes chamam a
atenção (e bem) para os privilégios invisíveis de se ser homem, branco e
heterossexual não se enxergam quando se fala do privilégio de classe.
Há uns anos conheci um
responsável por uma empresa de consultoria em Lisboa. Contou-me que a sua
empresa, quando recrutava jovens economistas e gestores, o fazia sempre em
Lisboa. Um dia deu-se conta disso e foi contratar jovens de uma faculdade do
Norte. Gostou tanto dos que contratou que, no ano seguinte, contratou mais uns
quantos. Era a única empresa lisboeta onde o sotaque do Norte era dominante. É
evidente o que se passou. Como consultora média que era, muitos dos melhores
alunos de Lisboa tinham alternativas melhores. Quando foi ao Norte, contratou
dos melhores dessa faculdade, que, naturalmente, eram melhores que os médios de
Lisboa a que estava habituado. A empresa só ganhou com o esforço de alargar a
base de recrutamento.
O caso que descrevi é um bom
exemplo das conclusões a que chegaram vários estudos já feitos para os Estados
Unidos. Quando muitas empresas procuraram, conscientemente, promover a
diversidade dos seus quadros (aumentando a presença de negros, latinos,
mulheres, etc.), no início não sabiam como fazer o recrutamento. Os circuitos a
que estavam habituadas davam-lhes sempre o mesmo perfil de candidatos. Depois
das dificuldades iniciais, aprenderam a que outras universidades e outros
contactos recorrer. Aprenderam a avaliar CVs a que não estavam habituados. Uma
vez passado o processo de aprendizagem, descobriram que havia vários candidatos
qualificados e prontos que sempre tinham ali estado à espera da sua
oportunidade. O mesmo se passou na Noruega, quando se impuseram quotas de
género nas administrações de empresas: depois de um ajustamento inicial, a
produtividade não caiu.
Voltando a Portugal. É chato
fugir ao circuito familiar. É mais difícil obter recomendações e dá mais
trabalho encontrar a pessoa certa. Compreendo tudo isso, mas de que adianta à
esquerda enchermos a boca com a ética republicana, se não combatemos as
linhagens de sangue?
*Professor da Escola de
Economia e Gestão da Universidade do Minho