sexta-feira, 12 de abril de 2019

Luis Aguiar Conraria : "O privilégio de se ser homem, heterossexual e branco"


O artigo de Luis Aguiar Conraria  que saiu no Jornal Publico a 10 de abril 19, com o título O privilégio de se ser homem, heterossexual e branco:

"É chato fugir ao circuito familiar. Mas de que adianta à esquerda enchermos a boca com a ética republicana, se não combatemos as linhagens de sangue?

Há uns dias, um destacado intelectual de esquerda mostrou-se perplexo com o falatório em torno das relações familiares dos nossos governantes. Explicou que também no Reino Unido havia muita endogamia e concluiu que em “Portugal, onde um grupo de 500 pessoas andou nas mesmas faculdades, frequenta os mesmos restaurantes e tem a filharada nos mesmos colégios, não faz sentido tal puritanismo”. Esta forma elitista de justificar a endogamia tem a virtude de dizer aquilo que muitos pensam, mas que têm vergonha de dizer: as elites não estão interessadas na mobilidade social. Para a filharada dos outros subir no elevador social, os filhinhos das elites têm de descer. Naturalmente, as elites protegem-se e perpetuam-se.
Num outro registo, como notou Maria João Marques, a 27 de Março, no Observador, esta endogamia tem a utilidade de mostrar que o principal argumento anti-quotas de género, o de que as mulheres devem lá chegar por mérito e não por quotas, é conversa fiada: já só um tontinho é que acha que as nomeações e promoções políticas têm o mérito como primeiro critério.
Apesar de concordar com a Maria João, há um ângulo que ela não explorou e que tem a ver com quais os sacrificados quando se impõem quotas de género numa sociedade endogâmica. É que é demasiado fácil para a elite impor quotas de género, parecendo que defende a igualdade, quando sabe que os seus filhos não vão perder os seus lugares. Para esses, como se vê, há sempre lugar. Com as quotas por género, abre-se caminho às filhas das famílias que estão no círculo de confiança. Não só a essas, claro, porque a nossa elite de 500 pessoas não é suficientemente grande, mas também a essas. Quem perde são os filhos das outras famílias.
Mamadou Ba, negro, dirigente do SOS Racismo e assessor do Bloco de Esquerda na Assembleia da República, manifestou no mural do seu Facebook a sua frustração com a forma como a esquerda conduz este debate, ao não reconhecer que a endogamia é incompatível com o ideal republicano: “Quem paga o preço mais alto do nepotismo e da endogamia são obviamente os deserdados/as da república, aqueles/as que não têm forma de construir teias de poder e, por isso mesmo, dispõem de pouca ou nenhuma possibilidade de acesso. Entre os/as deserdados/as da república estão, por excelência, os sujeitos racializados.” Tem razão. O nepotismo e a endogamia tramam os mesmos de sempre: negros e ciganos na linha da frente, como salientou Mamadou, mas também toda a massa de gente das famílias erradas.
Como vários estudos demonstram, à medida que o acesso à educação de qualidade se generaliza, as elites encontram novas (AQUI) formas de se protegerem (AQUI) Não surpreenderei ninguém ao dizer que a escolha das escolas privadas é apenas uma dessas formas. Ou nunca acharam contraditório que tantos políticos de esquerda defendam ardentemente a escola pública ao mesmo tempo que põem as crianças em colégios privados?
Ainda este ano, os sociólogos ingleses Sam Friedman e Daniel Laurison publicaram um livro onde mostram que o efeito da classe de origem é persistente (AQUI) Os autores, estudando com detalhe o caso do Reino Unido, mostram que, mesmo entre pessoas da mesma profissão, quem vem de classes inferiores é prejudicado. Não estou a falar da dificuldade para aceder a profissões de topo, falo dos que, vencendo todas as barreiras, conseguiram lá chegar: com a mesma profissão, quem vem de baixo ganha menos.
Aos filhos das boas famílias basta ir com o vento: vão para a escola certa onde conhecem as pessoas certas, fazem o primeiro estágio no sítio certo e aproveitam as oportunidades que surgem. Os filhos da classe laboral têm sempre o vento contra, podem lá chegar, mas demoram muito mais tempo num processo muito mais desgastante. Os autores não negam nem os efeitos da etnia nem do género, mas mostram que a essas barreiras há que acrescentar a classe. As várias discriminações reforçam-se mutuamente: uma mulher negra de origens modestas, num emprego de topo, ganha menos 20.000 libras do que o seu colega branco oriundo de uma classe privilegiada.
Os autores analisam vários casos, entrevistando empregadores e trabalhadores, e concluem que praticamente ninguém tem consciência do seu privilégio de classe: atribuem tudo ao mérito. Se fosse em Portugal, ainda diriam que eram prejudicados por serem filhos de quem são, como Daniel Oliveira e Vieira da Silva já explicaram. Aqueles que tantas vezes chamam a atenção (e bem) para os privilégios invisíveis de se ser homem, branco e heterossexual não se enxergam quando se fala do privilégio de classe.
Há uns anos conheci um responsável por uma empresa de consultoria em Lisboa. Contou-me que a sua empresa, quando recrutava jovens economistas e gestores, o fazia sempre em Lisboa. Um dia deu-se conta disso e foi contratar jovens de uma faculdade do Norte. Gostou tanto dos que contratou que, no ano seguinte, contratou mais uns quantos. Era a única empresa lisboeta onde o sotaque do Norte era dominante. É evidente o que se passou. Como consultora média que era, muitos dos melhores alunos de Lisboa tinham alternativas melhores. Quando foi ao Norte, contratou dos melhores dessa faculdade, que, naturalmente, eram melhores que os médios de Lisboa a que estava habituado. A empresa só ganhou com o esforço de alargar a base de recrutamento.
O caso que descrevi é um bom exemplo das conclusões a que chegaram vários estudos já feitos para os Estados Unidos. Quando muitas empresas procuraram, conscientemente, promover a diversidade dos seus quadros (aumentando a presença de negros, latinos, mulheres, etc.), no início não sabiam como fazer o recrutamento. Os circuitos a que estavam habituadas davam-lhes sempre o mesmo perfil de candidatos. Depois das dificuldades iniciais, aprenderam a que outras universidades e outros contactos recorrer. Aprenderam a avaliar CVs a que não estavam habituados. Uma vez passado o processo de aprendizagem, descobriram que havia vários candidatos qualificados e prontos que sempre tinham ali estado à espera da sua oportunidade. O mesmo se passou na Noruega, quando se impuseram quotas de género nas administrações de empresas: depois de um ajustamento inicial, a produtividade não caiu.
Voltando a Portugal. É chato fugir ao circuito familiar. É mais difícil obter recomendações e dá mais trabalho encontrar a pessoa certa. Compreendo tudo isso, mas de que adianta à esquerda enchermos a boca com a ética republicana, se não combatemos as linhagens de sangue?

*Professor da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

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