Artigo de HELENA MARUJO Felicidade Pública
(3): A eterna novidade do mundo que saiu no Publico de 18.2.2013:
“Do fotógrafo russo
Roman Vishmiac diz-se que aprendeu a conter a respiração durante
dois minutos para fotografar os insetos e animais que observava e captava,
negando-se a fotografar animais mortos. Esperava pela beleza, primeiro sem se
mover, alimentando o seu carácter vitalista, para depois finalmente atuar,
disparando a aquina e imortalizando o
momento, que passava a ser um momento de criação.
Vivemos o que muitos definem como tempos duros, melancólicos, ambíguos,
descritos como emocional, espiritual e moralmente estéreis.
Alguns de nós sentem que deixaram simplesmente de respirar e, em asfixia,
não têm esperança de retomar o fôlego. Nesse estado escravizado experimentamo-nos
incapazes de ver vida, e não conseguimos suspender a mecânica das nossas
atividades domésticas e domesticadoras para sentirmos o palpitar, o vislumbre
de alternativas, o mais além que o hoje encerra.
Outros, ao invés, têm o atrevimento de, como Vishmiac, ao suspender a
respiração, contemplar este clima denso e de penumbras à procura de sinais
reveladores de confiança no futuro e, numa determinação consequente, verem e
criarem eles mesmos a beleza. Vão para além da miopia típica de discursos cínicos,
superficiais, repetitivos, puramente comentadores e nunca agentes, e moldam
novas gramáticas existenciais que, numa nitidez milagrosa, mostram que, afinal,
estamos a avançar como humanidade. Somos parte, portanto, de um momento da
história que é tão apocalítico quanto festivo.
Fui testemunha recente, uma vez mais, da alquimia pública que tantos destes
“iluminadores de possibilidades” estão a protagonizar na sociedade portuguesa.
Convocada para um encontro informal num belíssimo espaço público de Lisboa,
cruzei-me fascinada com um grupo de duas dezenas de pessoas, até aí quase todas
desconhecidas, convidadas e escolhidas para conversar por serem, de alguma
maneira, Facilitadores de Transformação.
Cada um, na sua forma distinta, há anos que questiona o que é a
civilização, abrindo-se a um campo de possibilidades experimentais que torne a
sua vida e a de todos um espaço potenciador de plenitude, fazendo da sua
existência uma prática relevante, que o faça ser mais do que mero personagem
casual da vida. Um e outro perguntam-se, como preconizava Peter Drucker, não o
que podem atingir individualmente, mas como podem contribuir para o todo, de
que forma tecer um novo poder social que se suporte e se espelhe no poder de
agir em autenticidade à mudança, mesmo que isso implique a incerteza do ato
criador.
Nessa conversa matricial, antes de mais apresentaram-se como mães e pais,
em seguida como pessoas inquietas e ativistas, e depois ainda enquanto
agricultores, construtores de casas, engenheiros, informáticos, arquitetos,
psicólogos, designers, coaches, professores, dançarinos, músicos,
desportistas... que passaram por todo o tipo de experiências e de trabalhos, de
dores e de buscas, mais desafiadoras ou mais banais, mas todas exigentes – da
bancarrota à vida empreendedora – vivendo hoje uma simplicidade de vida
estrondosa, suportada em cinco ideias-base. São elas: que estamos em transição
cheios de força transformadora; que esta se faz com base em redes de
aprendizagem e conhecimento, que se devem por sua vez suportar na dimensão
colaborativa; que o convocar público de convergências e a dimensão eclética
permitirá construir melhores pessoas e melhores culturas; que precisamos de
trazer simplicidade para as coisas complexas, contrariando o que fixemos antes,
já que complicámos o simples; que temos que voltar a ser apologistas da
experiência e que o poder mais importante da contemporaneidade é o poder de
atuar; e que as nossas vidas deverão ser de serviço, sendo que uma das formas
de o conseguir é por as ideias ao serviço do coração. Cada um, nas suas vidas,
e através da forma inovadora que escolheu para ter uma participação pública,
cria diariamente outra forma de ser gente e mundo, dentro de uma ética do
gratuito, da sustentabilidade, da compaixão, da diferenciação, do dar espaço
para o futuro que parece querer emergir.
Neste criar que é ligar, neste facilitar que é credibilizar, vi sinais
puros de oxigenação, numa respiração ritmada, em co-inspiração, atenta à
matéria de que são feitas as nossas próprias vidas. E segundo os estudos
recentes da felicidade, parece que é cada vez mais isso que conta.
De facto, na mesma altura cruzei-me com um artigo científico que será
publicado em breve no Journal of Positive Psychology, onde o
investigador Roy F. Baumeister e colegas aprofundam as diferenças entre uma
vida feliz e uma vida com sentido. A dicotomia que separa o lado hedónico da
existência (prazer, emoções positivas, sentir bem) e o lado eudaimónico
(desenvolvimento pessoal, propósito) já remonta a Aristóteles, mas sabendo como
as duas formas de experiência de vida se interligam, tem ganho lugar nos
estudos recentes da ciência da felicidade perceber o que as diferencia, e que
impacto social e pessoal têm uma e outra.
A felicidade hedónica sem a experiência de sentido coletivo é
orientada para o presente, mas a consciência de uma vida com propósito implica
integrar o passado, o presente e o futuro. Os que estão felizes parecem ser os
que esperam muito da vida e dela tiram tudo o que podem; os que têm um
propósito para a sua existência são, ao que o estudo indica, aqueles que dão.
Perguntemo-nos por isso: poderemos ser realmente felizes hoje sem uma visão
integradora da nossa existência, sem uma reflexão sobre para e porque queremos
viver, sem mudanças e evoluções pessoais, claramente decididas e determinadas
sobre os seres humanos que queremos ser, levando para a vida de todos os dias
aquilo que nos faz sentido e dá propósito?
A resposta é: podemos. Podemos ser felizes e ter vidas sem sentido, mas
parece que ter existências em que, depois das necessidades básicas resolvidas
(base primeira e vital para se ser feliz), o foco seja apenas que as nossas
necessidades e desejos associados ao prazer sejam satisfeitos, está relacionado
com uma vida auto-absorta, relativamente vazia e até potencialmente egoísta. A
vida feliz que não é acompanhada de uma vida com sentido é tendencialmente
irrelevante para a sociedade.
Por seu lado, podemos ter um sentido na vida e viver infelizes. Neste
caso, a centração do bem-estar não é já é no próprio, e ter uma vida altamente
significante mas infeliz permite ainda assim que a pessoa contribua para o bem
comum. Um envolvimento sério com coisas para além de nós mesmos e dos nossos
prazeres pode ser tão profundo que possa ir em detrimento da própria felicidade
individual.
Por isso, perseguir a felicidade não pode ser a única meta das nossas
vidas, a não ser que essa felicidade seja pública, coletiva, comprometida com
os outros, criando a sua presença social.
Se, como conclui Baumeister e colaboradores no seu estudo, a felicidade é
natural, mas o sentido é uma construção cultural, estamos então num momento
histórico em que é a busca do propósito que nos move, e que nos tornará cada
dia sabiamente mais humanos.
Estes Facilitadores de Transformação que conheci, parando a respiração por
momentos para apreciar o belo da existência, entre as raízes do que já foi e a
ilusão do que pode ser, mostram que não é uma felicidade pessoal que procuram e
que mais os move, ainda que ela possa vir por acréscimo e seja bem-vinda; mas
que quando retomam a respiração a fazem com consciência, indo bem fundo, num
movimento toráxico sempre com a inclusão do Outro, para melhor saber soprar as
velas do futuro que velejam.
O titulo com que se auto-designaram, se bem que ainda em processo, já
expressa o compromisso ético com uma utopia dialogante, dialética e com sentido
crítico, ao serviço da emancipação humana e de um novo ritmo coletivo, que
capte e alimente o verdadeiro propósito e vitalidade do todo. Adaptando
Kierkegaard, diria que lutam pela pureza de coração de deixar, nem que seja,
uma só coisa, assim renovando a eterna novidade do mundo.”
Helena Marujo é professora universitária no
ISCSP/UTL.A
(o sublinhado é meu)