Artigo de António Carlos Cortez
que saiu no jornal público de hoje, com o título “O lugar do livro no ensino:
problemas e ideias, um subsídio”:
O
pensamento ligado à palavra, a palavra em coerência com a acção, isso
perdeu-se. A crise está, portanto, do lado da educação e da cultura
Numa polémica recente, quer José Pacheco
Pereira, quer António Guerreiro dissertaram sobre o lugar do livro (e da
leitura, ou de certo tipo de leituras) na sociedade actual. O historiador, a
pretexto do fecho de livrarias como a Leitura, no Porto, ou a Pó dos Livros, em
Lisboa, coloca o dedo na ferida ao considerar que “quanto à morte das livrarias
[repetem-se] os mesmos lugares-comuns sobre o arcaísmo dos livros face às novas
plataformas digitais, às mudanças de hábitos de leitura geracionais” (in PÚBLICO,
3/3/18). Mas há outras feridas que convém não esquecer, de tão abertas que
estão.
Referindo-se à “ascensão de novas e
agressivas formas de ignorância, aquilo a que [tem] chamado a ‘nova
ignorância’”, fruto do apagamento da memória e da degradação de valores
civilizacionais, Pacheco Pereira apela a que se combata essa nova barbárie, tal
como se combate o autoritarismo, o sexismo, a violência e o populismo. Importa,
a meu ver, ao discutir-se o livro e a leitura, levar a debate até ao campo onde
esse tema pode e deve ser mais alvo da mais profunda reflexão: a Escola, já que
a Assembleia da República, casa da Democracia, jamais se debruça sobre tão
superficial assunto.
Espanta, porém, que tais artigos não
tenham merecido da parte da Escola e da Universidade algum tipo de eco. É verdade
que a emergência dos novos meios tecnológicos (o tablet e seus
quejandos) não garante – antes impede – a criação de qualquer novo tipo de
leitura. Ilude-se quem pensa que o computador pode levar à leitura do livro. A
tecnologia pode ser útil quando instrumental, é nefasta quando se crê
essencial. Para mais, se os estudantes do ensino secundário ou do ensino
universitário, na sua maioria, não lêem, por que razão haveria o livro de se
transformar em meio de saber se nunca verdadeiramente o foi só porque se usa o
computador? Soma-se a este facto, um outro: reféns que estão da lógica
depredatória de exames nacionais, ou da lógica do “decorar agora, esquecer a
seguir”, não admira que o livro lhes seja completamente estranho. A explicação,
quanto a mim, é óbvia: nos últimos 25 anos (veja-se o que foi a reforma de
programas em 1996) a Escola transformou-se no lugar da formação técnica e tal
paradigma não se compagina com a leitura competente de livros exigentes na
forma e no conteúdo.
Com efeito, desde meados dos anos 90,
enfraqueceu-se a presença, nos currículos, das disciplinas ancoradas na
reflexão sobre a linguagem. É, pois, natural que os mais novos sintam
dificuldades na prática da redacção e, subsequentemente, na prática da
oralidade. Isso advém da dificuldade de pensar com clareza. E como pensar com
clareza se poucas palavras se dominam? Resta, assim, o macaquear dos dedos, o
dedilhar teclados. O pensamento ligado à palavra, a palavra em coerência com a
acção, isso perdeu-se. A crise está, portanto, do lado da educação e da
cultura. Proponha-se no exame de Português que aí vem do 12.º ano, no Grupo
III, uma dissertação sobre o Maio de 68 (passam 50 anos, impõe-se lembrar...) e
ver-se-á o que para os mais jovens isso significa... Ver-se-á o que leram, o que
lhes foi dado a saber; como escrevem, de que modo lhes foi ensinada a
competência da escrita...
Neste Dia do Livro, quer-me parecer que,
para além dos argumentos de Pacheco Pereira e de Guerreiro, outros há que
podemos elencar. Lembrando os aparelhos ideológicos de Estado, como os definiu
Louis Althusser, tem-se hoje a sensação de que, da Escola às Universidades, se
impôs uma política educativa que visa transformar a Escola num avatar das
empresas. Com o aspecto cool e o auricular da praxe,
caminhando, qual Steve Jobs do saber, nos palcos deste ou daquele auditório
desta ou daquela escola pública, um ministro da Educação promove os
computadores como meio de transmissão de conhecimentos. É uma cópia do gestor
sapiente cujos lugares-comuns espantam as audiências fascinadas. Impera a
retórica do marketingmais sabujo quando se trata de defender esta
ou aquela política educativa. Sucesso a quanto custe, essa é a única mensagem
que verdadeiramente se ouve. Os computadores, não os livros, surgem, para o
cumprimento desse desígnio, como os aliados da nova elite tecnológica e, na
mesma lógica, pergunta-se para quê o livro se a biblioteca, moderna e tão
apelativa com os seus computadores, é o lugar ideal para jogar o Call
of Duty? Perante um trabalho que exige investigação, o tablet ou
o iPhone são as tábuas de salvação, julga-se. Mas sem o conhecimento de
bibliografia activa e passiva (sem livros na memória!) sobre as matérias acerca
das quais têm de “investigar”, que podem os estudantes vir a ler e saber
através desses miraculosos suportes virtuais?
Num outro plano, admita-se: o que tem
prevalecido é, na actividade docente, com fundas consequências para os alunos,
a ideologia do examinador. Avalia-se, não se ensina. Se pouco ou nada se lê, e
pouco ou nada se escreve, não importa o como se faz, exige-se apenas o faça-se
não importa como. Por isso, vão sendo cada vez mais comuns nas Universidades e
nos mais diversos cursos os alunos que, tendo de escrever sobre um dado tema,
fazem plágio de trabalhos já publicados e disponíveis na Net. Eis o expediente
de que se servem. Eis o modo como utilizam as plataformas digitais – ler, isso
é difícil! Ler o que faz pensar exige tempo, silêncio, maturação de ideias e de
conceitos. Ora, a sociedade do cansaço em que vivemos pede justamente o
contrário: rapidez nas aprendizagens, nada consolidando, tornando indistinto o
trigo do joio. A derrota dos apocalípticos é a vitória dos integrados. A
reboque da burocracia tentacular, das reuniões onde se discutem “estratégias”
(mas com base em que autores? Defendendo-se que escola de pensamento?) para que
os alunos leiam e escrevam, o que temos hoje é uma Escola que esqueceu a
Poesia, a História, a linguagem. Em rigor, a Escola esqueceu o “para quê” e o
“como” da sua função social. Esqueceu o livro, transformou-se em empresa, linha
de montagem, certificadora (como a Universidade) de diplomas.
Discutindo-se o lugar do livro na
escola, raramente se diz o que muitos sabem: a única estratégia de combate
contra a “nova ignorância” (no fundo, velha, se virmos bem...) passa por trazer
de novo o livro para a Escola e a Universidade. Só assim não será inútil o que
escreveram nos últimos anos sobre a crise do livro e da leitura personalidades
como Artur Anselmo, Saldanha Sanches, António Guerreiro, Paulo Guinote,
Guilherme d’Oliveira Martins, Vasco Graça Moura, Helena Buescu, José Augusto
Cardoso Bernardes. Os diagnósticos estão feitos, e não se pode deixar de ver e
dizer que o rei vai nu: se quem ensina não preza o livro, se não se dão
condições para que quem ensina possa reflectir e ler, aprender a saber para
motivar, então semeamos no deserto.
Os professores, principais agentes neste
combate que é, de facto, civilizacional, não só não têm tempo como há, entre a
classe docente – digamo-lo com a coragem que se pede – um subtilíssimo (ou às
vezes um declarado) ódio à leitura que extravasa os programas e os manuais
adoptados. A prová-lo estão os livros de didáctica que enchem o mercado
livreiro, mais vendáveis que um ensaio de Eduardo Lourenço sobre Camões ou Antero,
um estudo de Jacinto do Prado Coelho sobre Eça ou Fernando Pessoa, ou um artigo
de Luiz Francisco Rebello sobre o teatro de Garrett ou de Joel Serrão sobre
Cesário.
De leitura se trata, com efeito. E de
livros. Do livro. Se o fecho de livrarias é não só um sintoma, mas a revelação
efectiva da doença da ignorância, não creio que sem uma Escola verdadeiramente
transformada em espaço do conhecimento se venham a resolver quaisquer problemas
relativos ao saber ler, ao saber escrever e ao saber pensar. Algumas coisas
simples se podem e devem fazer: substituir, nas bibliotecas escolares, o
computador pelo livro e promover, publicitar – dar a ver! – edições antigas,
comentar o aspecto gráfico, contextualizar esta ou aquela colecção de poesia,
aproveitar para falar da História, mas com rigor, com verdade. Um aluno ganhará
sempre mais descobrindo Carlos de Oliveira ou Eugénio de Andrade, que gastando
preciosas horas da sua formação leitora com os enredos de Dan Brown ou as
historietas risíveis dos humoristas de serviço.
António Carlos Cortez é poeta, crítico literário e professor.
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