terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Michael Corballis - a evolução da linguagem



A entrevista de Ana Gerschenfeld a Michael Corballis, psicólogo experimental, sob o título "A fala é um gesto facial parcialmente engolido", publicada no Jornal Publico a 16 de Jan /12:

Só consegue pensar quem é capaz de articular palavras? A mente humana surgiu graças a uma capacidade inata para a linguagem falada? O psicólogo propõe uma narrativa da origem da linguagem e do pensamento radicalmente diferente do que estipula a linguística moderna. O credo que Noam Chomsky enunciou há 50 anos poderá estar a abrir brechas...
Michael Corballis, da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, hoje reformado, é o autor de um recente livro intitulado The Recursive Mind: The Origins of Human Language, Thought, and Civilization. Para este psicólogo experimental de renome mundial, os seres humanos não são assim tão especiais: os neandertais eram tão inteligentes como nós e mesmo os chimpanzés são, em certa medida, capazes de pensar e de comunicar espontaneamente de forma não verbal. Corballis defende não só que as origens da linguagem humana são gestuais e não vocais, mas que o pensamento não precisa de linguagem para surgir. Isto significa um corte radical em relação aos linguistas que, desde os anos 1960, afirmam que sem linguagem não pode haver pensamento, que as capacidades verbais humanas são inatas e que representam uma evolução recente, repentina e única na história das espécies. Para Corballis isso significa simplesmente "acreditar em milagres".
Corballis deu duas conferências em Lisboa, no final do ano passado, a convite do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Católica Portuguesa e do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. E explicou ao P2 por que julga essencial reposicionar os seres humanos modernos - e em especial a emergência do nosso pensamento complexo e da nossa linguagem falada - numa perspectiva de continuidade natural com a evolução da vida na Terra.

É a linguagem falada que nos torna humanos?
Não. É verdade que a linguagem é algo que apenas temos nos humanos, mas acho que não precisa de ser falada. A linguagem gestual é tanto uma linguagem como a fala. A ideia de que a linguagem só pode ser falada tem uma longa história, mas o seu mais influente expoente actual é [o linguista norte-americano] Noam Chomsky.

O pensamento surgiu como consequência da emergência da linguagem?
Chomsky acredita que a linguagem e o pensamento são inseparáveis - e que o pensamento é de natureza linguística, uma espécie de maneira abstracta de representar o mundo. Também acredita que tudo isso surgiu nos últimos 100 mil anos e apenas nos humanos modernos - não nos neandertais, por exemplo, nem em qualquer outro tipo de homem primitivo. Penso que isso é como acreditar nos milagres e que Chomsky considera que a linguagem é uma espécie de milagre que simplesmente aconteceu - e o pensamento também. Para ele, o pensamento é uma linguagem interna e, quando é produzida externamente, dá origem à linguagem falada.
Esta visão das coisas remonta a Descartes - à Bíblia mesmo ("No princípio era o Verbo"...). Mas, para mim, não faz sentido. A emergência da linguagem é uma mudança demasiado radical para ter acontecido numa única etapa. Gosto de pensar na linguagem como algo que cresceu de forma darwiniana, da nossa herança como primatas e que terá emergido gradualmente. E que teve origem nos gestos e não nos sons. É essa a minha história...

Para além de nós, há outros animais capazes de pensar?
Tenho a certeza de que há outros animais pensantes. Acredito que os símios pensam, que os primatas pensam. O pensamento humano é sem dúvida mais elaborado, mas os grandes símios devem ter algum pensamento estruturado - e que não depende das suas capacidades linguísticas. Aliás, grande parte do pensamento humano também não é linguístico. Somos capazes de imaginar coisas em termos visuais, auditivos, motores. Conseguimos transformar esses pensamentos em linguagem - e obviamente os nossos pensamentos contêm palavras -, mas para evocar objectos, acções e pessoas não usamos só palavras.

O que nos diferencia dos outros animais pensantes é o facto de os nossos processos mentais serem muito mais poderosos?
Isso é o que gostamos de acreditar, não é? Que somos muito mais inteligentes do que os outros animais. Mas não é claro que a diferença seja assim tão grande. Todavia, concordo que existe uma diferença - e acho que é em parte devida à socialização. Os seres humanos desenvolveram uma espécie de "cultura ambiente" onde a comunicação e os processos sociais se tornaram muito importantes. Ela não inclui apenas a linguagem, mas também aquilo a que chamamos [na gíria] a "teoria da mente" - que é a capacidade de nos pormos no lugar de outra pessoa.
O que acho que é de facto relativamente especial nos humanos é essa capacidade de nos deslocarmos mentalmente para trás e para frente no tempo e de pensar em coisas que não estão fisicamente presentes, que não estão à nossa frente no preciso instante em que as evocamos. Eu chamo a isso a nossa capacidade de "viajar mentalmente no tempo" (mental time-travel). Não só conseguimos viajar no tempo na nossa mente, como também podemos viajar mentalmente entre pessoas. Posso imaginar que sou você e o que você estará a pensar agora. Mas, mais uma vez, acho que a capacidade de escapar ao presente imediato é um aspecto do pensamento e não da linguagem. Posso dizer-lhe o que fiz ontem - mas também posso imaginá-lo sem palavras na minha cabeça.
Acho que todos estes aspectos do pensamento estão sem dúvida mais desenvolvidos em nós, mas que também estão um pouco desenvolvidos nos grandes símios. E que estavam provavelmente muito desenvolvidos nos neandertais, por exemplo, que tinham um cérebro tão grande como o nosso, que eram muito parecidos connosco, cujo ADN era muito semelhante ao nosso e que viveram na Terra até há uns 30 mil anos. Ora, segundo Chomsky, os neandertais não poderiam ter tido linguagem nem pensamento. Não acredito nisso.

Há quem pense que os neandertais não tinham o aparato vocal necessário para desenvolver a fala.
As tentativas de reconstituição do tracto vocal dos neandertais fazem com que alguns especialistas afirmem que eles não poderiam ter tido uma linguagem articulada. Podiam articular alguns sons, mas nada de comparável com a maneira como nós falamos.
É uma questão ainda muito controversa. Mas eu, pelo meu lado, prefiro pensar que possuíam capacidades linguísticas, só que a sua linguagem não era particularmente vocal. Gesticulavam mais do que falavam. Aliás, nós também gesticulamos [ri-se]. E pensavam.

Também somos capazes de pensar acerca dos nossos próprios pensamentos.
Chama a isso "recursividade" (recursion). O que é?
Segundo Chomsky, a linguagem é definida pela sua recursividade, pelo facto de conseguirmos encaixar frases dentro de outras frases, tornando qualquer frase tão comprida quanto quisermos. É a recursividade que confere à linguagem a sua capacidade de gerar indefinidamente novas frases e que nos permite perceber uma variedade infinita de frases. Podemos ir à biblioteca, abrir um livro e ler uma frase que nunca vimos na vida e percebê-la.
O meu argumento é que essa recursividade não é, mais uma vez, específica da linguagem. Podemos pensar de forma recursiva: penso que sei o que você está a pensar e penso que você sabe que eu sei que você sabe o que eu estou a pensar. A teoria da mente (o facto de nos conseguirmos colocar no lugar de outrem) também é recursiva. Não só a recursividade do pensamento não é apenas linguística, mas existem mesmo línguas que aparentemente não são recursivas.

O que é que isso significa?
Significa que, ao invés do inglês ou do português, que permitem incluir frases no meio de outras frases, essas línguas se constroem com frases separadas, sendo compostas de uma sequência de frases distintas, sem inclusões.
Há, por exemplo, uma língua brasileira, o pirahã. Foi estudada pelo norte-americano Daniel Everett e, segundo ele, não é recursiva. Certas línguas do Norte da Austrália, da Nova Guiné e do Nepal poderão não ser recursivas; também são sequências de enunciados. Eu não sou especialista destas línguas, mas acredito que haja línguas sem a estrutura recursiva das línguas europeias.
Existe um grande debate à volta disto entre os especialistas que se revêem em Chomsky e os que estão mais próximos das ideias de Everett. Há quem pense, por exemplo, que a estrutura recursiva da linguagem surgiu quando a escrita apareceu e que foi o facto de as línguas se tornarem escritas que deu origem a regras para encaixar as frases umas nas outras.

Quando terá surgido a recursividade do pensamento?
A minha ideia é que as estruturas mais complexas de pensamento terão emergido durante o Pleistoceno [que vai de 2,6 milhões a 12 mil anos atrás], quando a vida se tornou difícil e os humanos foram obrigados a estabelecer elos mais fortes entre si e a formar grupos. E penso que a teoria da mente e talvez a capacidade de viajar mentalmente no tempo, que permitem utilizar o passado na planificação do futuro, evoluíram num tipo particular de ecologia, numa savana em África, e que a linguagem terá evoluído em paralelo. É-me útil saber o que você está a pensar, e é-me útil saber o que me aconteceu ontem - mas também é útil para o grupo que eu possa relatar isso aos outros. Portanto, acho que a linguagem não evoluiu propriamente no contexto do pensamento, mas no contexto da comunicação interpessoal dos pensamentos.

Resumindo, pensa que a linguagem não dá origem ao pensamento, nem precisa de ser fonética. Por que acha que a linguagem terá sido inicialmente gestual?
Os indícios de que dispomos são indirectos, mas um deles - de facto um dos argumentos mais fortes - é que há pessoas que comunicam e se percebem perfeitamente entre si sem utilizar sons. Um outro argumento é que os primatas possuem um sistema cerebral, chamado "sistema espelho" (mirror system), que evoluiu para apanharem objectos com as mãos.
O [meu] sistema espelho activa-se quando estendo o braço [como se fosse apanhar algo]. Mas também é activado quando você estende o braço. Portanto, permite fazer corresponder (mapear) o que você está a fazer com uma representação de mim próprio a fazer a mesma coisa. Acho que essa é a base dos processos mentais que não são linguísticos, que são gerados internamente. E que a linguagem, a viagem mental no tempo e a teoria da mente como que se incrustaram nessa estrutura cerebral.
Portanto, é natural supor que a linguagem, em particular, tenha evoluído através das nossas mãos (que são, aliás, o nosso órgão mais articulado). Por outro lado, tem-se revelado impossível ensinar chimpanzés a falar, mas eles podem ser ensinados a comunicar por gestos. Os resultados da aprendizagem de uma forma de linguagem gestual foram muito bons com chimpanzés, bonobos e gorilas.

Os símios usam linguagem gestual de forma espontânea?
Usam. Tem havido muitos estudos sobre chimpanzés e orangotangos no estado selvagem e os seus gestos têm sido filmados. Não são exactamente como os gestos humanos, mas são bastante complexos e transmitem informação. Muitos são pedidos de coisas uns aos outros. Tanto quanto sabemos, não estão a dizer o que fizeram ontem, embora tenha havido alguns artigos que referem chimpanzés ou orangotangos a fazerem aparentemente referência, com os gestos, a acontecimentos específicos que aconteceram no passado.

Então eles afinal também possuem uma capacidade inata para a linguagem?
Não tenho a certeza do que significa ter uma capacidade inata para alinguagem. Essa ideia vem de Chomsky, que argumenta que há uns 90 mil anos surgiu uma mutação que de repente nos dotou da estrutura da linguagem. Hoje em dia, isso está a ser posto em causa. Talvez essa mutação não nos tenha dado uma capacidade para a linguagem, mas antes uma capacidade de pensar de forma recursiva e uma capacidade ligeiramente aumentada da memória a curto prazo, permitindo-nos começar a armazenar na nossa mente sequências de memórias ou de fantasias.
Mas como nos é tão fácil colar palavras aos conceitos, como temos tanto jeito para verbalizar as coisas, as nossas imagens internas não linguísticas podem facilmente parecer-nos de natureza puramente linguística.

Ou seja, caímos na armadilha de pensar que o nosso próprio pensamento é linguístico, porque temos tanto jeito para rotular as nossas imagens mentais?
Sim, acho que caímos nessa armadilha. Há toda uma escola de filosofia e psicologia que considera que o pensamento tem uma estrutura linguística e que é literalmente composto por símbolos arbitrários na nossa cabeça. Eu acho muito mais provável que o pensamento seja composto de pantomimas, dessa forma de imaginar os acontecimentos como se estivessem a acontecer.
De facto, acho que a maneira inicial e natural de colar uma linguagem aos acontecimentos para os evocar aconteceu através da pantomima. Se lhe quiser contar algo que me aconteceu ontem, faço uma pantomima. Penso que a linguagem começou dessa maneira. Só depois se tornou simbólica - e não por os símbolos arbitrários serem necessários à linguagem, mas porque são mais práticos. E foi assim que, com o tempo, essas pantomimas se tornaram convencionais - acho que essa é a palavra certa -, fornecendo-nos etiquetas totalmente arbitrárias (a palavra "cão" não precisa de ter um som que evoque um cão), mas muito mais eficientes.

Foi por isso que a selecção natural acabou por seleccionar a linguagem falada?
Sim. Houve uma selecção final que permitiu que a linguagem se tornasse 90% vocal, embora ainda continuemos a gesticular. E é por isso que a nossa espécie sobreviveu e não os neandertais: porque tínhamos uma forma de comunicação mais prática. Por exemplo, é possível comunicarmos vocalmente à noite, sem ver o nosso interlocutor - e a fala é menos exigente em termos de energia, porque utilizamos a respiração para falar.
Mas mesmo a fala é na realidade gestual: quando falo, estou a fazer gestos com órgãos internos. Como não é possível vê-los, a única maneira de os transmitir é inserindo sons no sistema - mas ainda assim, são gestos. Não é preciso muito para passar dos gestos das mãos aos gestos na boca. Costumo dizer que a fala é um gesto facial parcialmente engolido.
Mas, na minha opinião, a verdadeira vantagem da fala é a miniaturização que implicou. Conseguimos encaixar o sistema de comunicação todo dentro da boca - e esse confinamento libertou o resto do nosso corpo. A partir daí, podíamos fazer outras coisas com as mãos e com o corpo, enquanto falávamos.
Gosto de pensar que a fala foi o primeiro exemplo de miniaturização na comunicação. O outro é o telemóvel. De certa maneira, estamos agora a avançar em sentido contrário: temos sistemas miniaturizados que podemos segurar na mão. A miniaturização é a chave do sucesso.
Hoje em dia, vemos toda a gente a gesticular nos seus dispositivos miniaturizados. Talvez acabemos por perder a voz. Em certa medida, a vantagem que os humanos tinham em relação aos neandertais era aquele sistema miniatura muito eficiente, capaz de libertar as mãos para o fabrico de armas, de ferramentas, de habitações.

Quando os neandertais e os homo sapiens se encontraram, os sapiens já possuíam essa vantagem?
Essa é de facto a minha versão das coisas. [ri-se]. Para alguns, os humanos eram demasiado simpáticos e cooperantes para serem capazes de matar um outro grupo, mas não é isso que a História nos diz.

Por que é que nós sobrevivemos e os outros não?
Há quem diga que tem a ver com o desenvolvimento de armas, mas eu acho que as armas são provavelmente uma consequência secundária da emergência da fala. Trata-se de saber o que veio primeiro, mas nem toda a gente concorda. Para mim, o pensamento veio antes da linguagem, a linguagem gestual veio antes da linguagem falada e pode-se reconstituir a história dessa maneira (veja, ainda estou a gesticular...) [ri-se]

As ideias de Chomsky estão a perder popularidade?
Acho que sim. Hoje em dia, há muita gente que não pensa nesses termos. Acho que os ventos estão a mudar. Segundo Chomsky, para estudar a linguagem, basta um locutor de uma língua. Só que agora percebemos que existem 6000 línguas muito diferentes no mundo e que é muito difícil encontrar princípios comuns entre elas.

Por que é que a teoria de Chomsky teve tanto sucesso?
Em parte porque era uma reacção contra o behaviorismo. Nos anos 1950, havia uma forte abordagem comportamental da linguagem. O célebre behaviorista B. F. Skinner publicou um calhamaço sobre a linguagem, Verbal Behavior, integralmente baseado nos princípios behavioristas de reforço dos comportamentos, que não fazia grandes distinções entre os seres humanos e os pombos. Chomsky escreveu então uma muito célebre crítica desse livro, adoptando a posição oposta, a de que a linguagem tinha de ser inata, tinha de ser específica dos humanos e de ter uma estrutura que não poderia ter emergido através da aprendizagem. Isso teve muito impacto e, na altura, era convincente; a sua crítica de Skinner estava provavelmente certa.
Mas a seguir, passou-se para o extremo oposto, passou-se a ver a linguagem como uma espécie de coisa humana inata, estruturada, mágica. Ainda hoje, essa teoria é muito poderosa.

Quais são as implicações da sua própria teoria?
A maneira "chomskiana" de pensar no pensamento parece-me deixar muitas coisas de fora: a dança, a música, até as metáforas. Acho que a minha noção do que é o pensamento é muito mais lata. Acho que permite retirar os símbolos do nosso cérebro e substituí-los pelo corpo. Nós humanos pensamos em termos corporais, não por símbolos - e, aliás, a maior parte de nós acha difícil pensar em termos simbólicos - por exemplo, achamos a álgebra difícil.
Os gestos, os movimentos, fazem mais sentido em relação à maneira de funcionar dos humanos. Colocam-nos numa perspectiva mais biológica de continuidade em relação aos outros animais. A tendência para acreditar que a linguagem e os símbolos têm algo de especial corresponde a tentar perpetuar a ideia de que os humanos são únicos, em vez de nos situar num percurso evolutivo.

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