Artigo de Catarina Gomes que saiu no Jornal Publico de 2.10.15 como título E se o seu filho lhe bater ou disparar um dardo para o olho da irmã?:
"Na maior parte das vezes
disciplina-se os filhos “em piloto automático”. Mas com castigos e ameaças
muitas vezes apenas se está a “espicaçar o lagarto”, dizem os autores de Disciplina
sem Dramas, que explicam como a neurociência tem tudo que ver com birras.
O nosso filho de nove anos atinge à queima-roupa o olho da irmã de cinco anos com um dardo disparado por uma arma de brincar. Uma taça de cereais é atirada ao ar, salpicando a parede toda da cozinha. Um filho de quatro anos bate na mãe com a mão, a seguir pontapeia-lhe a canela. Depois de um desejo contrariado, o seu filho atira-se para o chão do supermercado a gritar.
O nosso filho de nove anos atinge à queima-roupa o olho da irmã de cinco anos com um dardo disparado por uma arma de brincar. Uma taça de cereais é atirada ao ar, salpicando a parede toda da cozinha. Um filho de quatro anos bate na mãe com a mão, a seguir pontapeia-lhe a canela. Depois de um desejo contrariado, o seu filho atira-se para o chão do supermercado a gritar.
Reacções
típicas de pais a cenas deste teor ou parecido: “Pára já com isso!"
“Acalma-te imediatamente." “Foste malcriado.” Há também o “vai para o
quarto pensar”, “ficas uma semana sem consola”, “vais para a cama mais cedo” ou
até “um par de palmadas”. Às vezes a cena é rematada com “o eterno ‘porque eu
mando’”. Em resumo, descrevem os autores, ameaças e castigos.
Cenas
deste tipo terminam muitas vezes também com adultos a berrar. Um drama,
portanto. Um cocktail destas reacções automáticas é o
que muitos pais entendem como “disciplina”, quando a origem da palavra nada tem
que ver com castigar mas sim com “ensinar, aprender, dar instrução”, dizem
os autores do livro Disciplina sem Dramas (editado pela Lua de Papel), que esta
semana chegou às livrarias.
Reconhece-se
nalguma das reacções típicas destes pais? O que os autores nos dizem é que se
os seus filhos fazem birras ou têm este tipo de "mau comportamento"
não é porque são inerentemente “maus”, ou “mal-educados”, ou porque quem os
educa são pais incompetentes, mas porque lhes é muito difícil agir de forma
diferente, por razões biológicas. O que Daniel J. Siegel, professor de
Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia, e Tina
Payne Bryson, psicoterapeuta de crianças e adolescentes, pretendem explicar no
seu livro é que a neurociência tem muito que ver com a educação dos
filhos.
Vejamos:
uma criança arremessa um brinquedo e atinge outra criança, o pai responde: “Em
que é que estavas a pensar quando fizeste isso?” Temos uma ideia de como
pensaria um adulto equilibrado: saberia, à partida, que não se atiram objectos
quando se está frustrado com alguém, porque o acto não resolve o problema e até
pode agravá-lo, pode até acabar por estragar o seu próprio brinquedo e ainda
pode magoar gravemente a outra pessoa, fazendo com que ela tenha de ser
hospitalizada em estado grave com um hematoma ou uma fractura, não falando em
perigos de sequelas a longo prazo.
O
exemplo não está no livro, mas a ideia é que o que passa pela cabeça de uma
criança quando atira um brinquedo porque está frustrada não tem nada que
ver com o raciocínio de um adulto. Melhor dizendo, tem pouco de raciocínio,
porque a parte do cérebro humano onde estão “as competências de pensamento que
permitem ao ser humano tomar decisões acertadas” não está desenvolvida, lê-se.
“Tudo
isto significa que, embora gostássemos que os nossos filhos se portassem sempre
bem, como se fossem adultos, com equilíbrio emocional e moral, a verdade é que
isso lhes é impossível enquanto são muito jovens. Pelo menos não lhes é sempre
possível”, escrevem os autores.
Estimular "o andar superior"
O que Daniel J. Siegel e Tina Payne Bryson explicam numa linguagem simples é
que educação tem tudo que ver com neurociência, ou seja, com a forma como
o cérebro humano funciona.
Os
autores norte-americanos comparam o cérebro de uma criança a uma casa em
construção. Existe “a parte inferior do cérebro, constituída pelo tronco
cerebral e pela região límbica” – frequentemente designadas como “cérebro
reptiliano” ou “primitivo” –, assim designada porque é responsável pelas
“operações neurais fundamentais: as emoções fortes, instintos como a protecção
dos filhos; e as funções básicas como respirar, regular os ciclos de sono e
vigília e a digestão". Este “andar inferior” é a parte responsável pela
atitude de uma criança que atira um brinquedo ou morde em alguém, quando não
consegue levar a sua avante. É “a fonte da nossa reactividade” e esta é uma
parte do cérebro que está bem desenvolvida por altura do nascimento.
Já
“a parte superior do cérebro, responsável por processos mais sofisticados e
complexos, encontra-se subdesenvolvida por altura do nascimento e começa a desenvolver-se
durante a infância”. E é nesta parte que estão “as competências de pensamento,
emocionais e relacionais, que permitem ao ser humano tomar decisões acertadas e
de planeamento, regular emoções e o corpo, a introspecção, a flexibilidade e a
adaptabilidade, a empatia e a moral”.
“Uma
criança de quatro anos bate no pai enquanto está à espera. É desejável? Não. É
própria nesta fase de desenvolvimento? Absolutamente.” Seria melhor que “ela se
acalmasse e declarasse com compostura: 'Mãe, estou a sentir-me frustrada por
estares a pedir-me para continuar à espera; e, neste momento, estou a sentir o
impulso fortíssimo e agressivo de te bater – mas optei por não o fazer e, em
vez disso, por me manifestar com palavras'”, ironizam.
Quando
é que o processo termina? “Lamentamos informar que a parte superior do cérebro
só fica totalmente desenvolvida por volta dos 25 anos.”
Okay, então as crianças ainda
não são muito boas a fazer escolhas acertadas. Solução? Aceitar passivamente
que o seu filho se atire para o chão? Que chame nomes e arremesse brinquedos?
Não,
respondem o psiquiatra e a psicoterapeuta. A ideia é mudar de estratégia,
porque a tradicional, aquela que é familiar e automática para a maioria dos
pais, é contraproducente.
“Se
perante uma birra monstruosa no supermercado se inclina sobre a criança, de
dedo em riste e lhe diz, entre dentes cerrados, ‘Acalma-te imediatamente’, está
‘a espicaçar o lagarto’, desencadeando uma reacção na parte inferior do
cérebro.” Isto, porque a criança assimila na linguagem corporal e nas palavras
da mãe uma ameaça que acciona, em termos biológicos, “o circuito neural que lhe
permite sobreviver a uma ameaça”. A saber: entra em modo de luta ou de fuga.
O
psiquiatra e a psicoterapeuta explicam que não podemos estar, ao mesmo tempo,
num estado reactivo e receptivo, e que, se a mãe quer apelar à parte do cérebro
superior, talvez esta não seja a atitude mais correcta. Mais ainda, “os
castigos e os sermões são ineficazes, quando a criança está perturbada e
incapaz de ouvir os ensinamentos que lhes estiver a transmitir”.
A
boa notícia é que se é verdade que o cérebro da criança está em construção e o
do adolescente em “auto-reformulação”, os pais podem ajudá-los a estimular cada
vez mais “a competência interna de acalmar a tormenta e reflectir sobre o que
está a passar-se no interior”.
Estratégia
possível perante a birra: descer ao nível dos olhos das crianças, “tentar fazer
ligação com ela”, perguntando-lhe algo como: “Porque é estás assim?”
Mas,
atenção, dizem os autores, “fazer ligação não é o mesmo que
permissividade". "É tentar que a criança consiga ficar de novo
receptiva a ouvi-lo. E, no processo, fazer com que ela se sinta compreendida
nas suas emoções.” E, durante o processo, pode acabar por perceber o porquê do
seu comportamento: “Eu sei que é difícil esperar. Queres muito que vá brincar
contigo e estás zangado porque eu estou no computador, não é verdade?” “Sim.” É
um dos diálogos do livro.
Isso é tudo muito bonito, mas...
O facto de o cérebro estar em mudança não é motivo para ignorar os maus
comportamentos; é, aliás, mais uma razão para que os pais imponham limites
definidos, defendem. “Porque não têm barreiras internas precisamos de as impor
externamente. As crianças precisam de ajuda a compreender o que é permissível e
o que não é.”
Depois
de conseguir acalmar a tempestade, é tempo de passar a mensagem moral, de
explicar o que é correcto e não correcto, o que os autores chamam
“redireccionar”. Explicar-lhe que em vez de bater há alternativas, como dizer
porque está zangado.
O
que os autores preconizam é que estes momentos de crise são oportunidade para
estimular “uma bússola moral”, para que, "mesmo quando não esteja presente
um adulto, as crianças aprendam a ser ponderadas, saibam gerir as suas reacções
à frustração e aprendam a capacidade de se colocarem no lugar do outro".
Daniel J. Siegel e Tina Payne Bryson defendem que é possível ensinar a
desenvolver a empatia, introspecção e da compaixão, base da inteligência
emocional e social.
Mas
para isso, quando se disciplina, os pais têm de trabalhar para compreender os
pontos de vista dos filhos, o seu estádio de desenvolvimento e aquilo que eles
são capazes de fazer. Muitos dos castigos são injustos, porque se baseiam em
expectativas irrealistas sobre a forma como os filhos são capazes de reagir,
notam.
Isso
é tudo muito bonito, mas… “Eu trabalho! Tenho outros filhos! E o jantar para
preparar! E aulas de piano, ballet, treinos de futebol e
centenas de outras coisas para fazer.” São respostas que estes profissionais de
saúde mental ouviram muitas vezes. Dizem-lhes que o seu método é “um luxo” para
pessoas com tempo.
“Percebemos
tudo isso, pois ambos trabalhamos, os nossos cônjuges trabalham e somos ambos
pais empenhados.” Nem sempre se consegue, admitem, e até “um perito em parentalidade
perde a cabeça”, confessam.
Tina
Payne Bryson, mãe de três filhos e directora de relações parentais no Mindsight
Institute, conta aquela vez em que o filho de três anos lhe bateu e ela
respondeu como deve ser, de forma afectuosa e compreensiva: “As mãos são para
ajudar e amar, não para magoar.” “Ele bateu-me outra vez.” De uma forma talvez
um pouco terna disse: “Au! Isso magoa a mamã.” À terceira agressão: “Nós não
batemos. Se estás zangado, precisas de utilizar as tuas palavras.” E ele
bateu-lhe outra vez. Aí a especialista em desenvolvimento infantil na Saint
Mark’s School mandou-o de castigo para o quarto e ele deu-lhe um pontapé na
canela. “E foi então que me mostrou a língua.”
“Em
resposta, a parte superior do meu cérebro, racional, empática, responsável,
capaz de resolver problemas, foi sequestrada pela parte inferior do meu
cérebro, primitiva e reactiva e eu gritei: “Se puseres a língua de fora mais
uma vez, eu vou arrancá-la da tua boca.”
“Este
não foi um bom momento parental.” “O meu filho atirou-se para o chão a chorar.
Eu tinha-o assustado e ele só dizia: “És uma mamã má!” Pausa.
“Ajoelhei-me,
segurei-o perto de mim e disse que estava arrependida. Deixei-o falar sobre o
quanto ele não tinha gostado do que se tinha acabado de passar. Voltámos a
contar a história do que se passou para ele tirar sentido da situação e
reconfortei-o.” “Acontece à maior parte de nós.” Para disciplinar "sem
dramas" é preciso treinar.
Alguns conselhos para evitar “erros de disciplina que até os
melhores pais cometem”
Não disciplinar “em piloto automático”
Quando se disciplina “em piloto automático”, concentramo-nos tanto nos castigos
que estes se tornam o objectivo final. O objectivo da disciplina não é uma
consequência ou um castigo. “É ensinarmos os nossos filhos a viver bem no
mundo.”
Ir aos porquê
Qualquer médico sabe que “um sintoma é apenas um sinal de que uma outra coisa
precisa de ser tratada", dizem os autores. O comportamento irá repetir-se,
“se não estabelecermos uma ligação com os sentimentos dos nossos filhos e com
as experiências subjectivas que levaram a esse comportamento”. “Concentramo-nos
demasiado no comportamento e não o suficiente no porquê por detrás do
comportamento”, escrevem.
Disciplina com afecto
Estes dois aspectos da parentalidade podem e devem coexistir. “É possível
combinar limites claros e consistentes com uma empatia terna.” Não subestime o
poder de um tom de voz gentil, aconselham.
Falar demasiado
Muitas vezes, quando as crianças estão reactivas e têm dificuldades em ouvir,
precisamos apenas de estar calados. Quando falamos e falamos, estamos a
dar-lhes “imensos estímulos sensoriais que podem desregulá-los ainda mais”. Em
vez disso, utilizar mais a comunicação não verbal: “Abrace-os, sorria.”
Não disciplinar para a audiência
“A maior parte de nós preocupa-se com o que as outras pessoas pensam,
especialmente no que toca à forma como educamos os nossos filhos. Chame o seu
filho à parte e fale sossegadamente com ele.”
Não presumir o pior
“Não me importa. Não quero ouvir. Não há razão, nem desculpa.” “Antes de
condenar uma criança pelo que parece óbvio, descubra o que ela tem para dizer.
Então, pode decidir a melhor forma de responder.”
Não disciplinar em resposta a hábitos
“Por vezes atacamos o nosso filho porque estamos cansados, ou porque foi isso
que os nossos pais fizeram connosco. É necessário reflectir sobre o nosso
comportamento e responder apenas ao que está a ter lugar naquele instante.”
Peritos e instintos
Os autores põem na categoria de “peritos” tanto autores como eles, como amigos
e familiares com opiniões sobre como devemos educar os nossos filhos. “É
importante que evitemos disciplinar os nossos filhos com base no que as outras
pessoas pensam.” “Encha a sua caixa de ferramentas disciplinar com informação
de muitos peritos (e não peritos), depois ouça os seus próprios instintos,
quando for para seleccionar a melhor abordagem à sua família e ao seu filho.”
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