Especialista francês defende que duas
condições são essenciais para que as escolas lidem com problemas como o
bullying: a estabilidade do corpo docente e a construção de um bom clima
Entrevista de Lúcia
Müzell da Nova Escola
A violência nas escolas só pode ser enfrentada
se tratada em profundidade, com formação docente específica, incentivo à
solidariedade e aumento da proximidade entre professores e alunos. Essa é a
avaliação do especialista francês Eric Debarbieux, autor do primeiro plano
nacional de combate ao bullying nas escolas da França. Câmeras de vídeo?
Detectores de metais? "São inúteis", de acordo com o autor de obras
como Violência na Escola: Um Desafio
Mundial e Os Dez
Mandamentos Contra a Violência na Escola. Há sete anos Debarbieux dirige o Observatório Internacional
da Violência nas Escolas, em Bordeaux, cargo que ocupou após realizar uma ampla
pesquisa no Brasil, onde foi diretor de Pesquisa e Avaliação da Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A experiência,
realizada com 11,5 mil estudantes, lhe permitiu traçar um perfil do problema
nas escolas brasileiras.
Que tipo de atos se
enquadram no termo violência escolar?
Eric Debarbieux: Fatos
mais marcantes, como o massacre do Realengo (episódio em
que um ex-aluno entrou armado em uma escola municipal do Rio de Janeiro em
abril de 2011 e matou a tiros 12 estudantes), mas principalmente as violências cotidianas que têm como
característica a repetição. No mundo inteiro, um grande número de alunos sofre
com ações desse tipo diariamente. E elas podem ser banais, como receber um
apelido maldoso ou sofrer pequenos empurrões. As pesquisas apontam que, embora
sejam atos relativamente simples, envolvendo alunos ou professores, o fato de
eles se repetirem à exaustão é grave. A violência explícita, com agressões
físicas ou mortes, é muito excepcional e infelizmente difícil de neutralizar
porque constitui crimes como outros quaisquer.
É possível determinar as
causas desse problema?
Debarbieux: Elas
são múltiplas e determinadas pela soma de certo número de fatores de risco
presentes no cotidiano dos envolvidos. Um deles é o pessoal, ligado ao
temperamento de cada um, mas também influenciado pelas relações familiares e
pelo meio social. Outro elemento importante é o ambiente da escola. Por
exemplo, a estabilidade da equipe docente e a clareza das regras escolares são
aspectos determinantes para que se alcance a proteção almejada. Na França,
identificamos que as escolas mais problemáticas são aquelas que têm o corpo
docente mais instável. Sem um grupo perene e que conviva de forma sadia, é
difícil fazer algo contra a violência escolar. É uma questão de solidariedade e
de exposição ao risco: você fica menos exposto quando integra um grupo que seja
solidário.
O professor, de modo
geral, é um profissional preparado para lidar com a violência na escola?
Debarbieux: Esse é um dos pontos essenciais a debater. Na maioria dos países, faltam
docentes capacitados para enfrentar essa situação difícil. Fico impressionado
com o fato de que os professores passem a vida trabalhando como líderes, tendo
que manter o controle da classe, sem receber nenhuma formação específica para
isso. É inacreditável, inclusive, porque as violências escolares surgem quase
sempre dentro dos grupos de estudantes.
O tipo de violência
escolar mais popular no mundo hoje é o bullying?
Debarbieux Certamente.
De acordo com nossas estimativas, a média mundial de alunos atingidos pelo
problema fica entre 7 e 15%. Os graus de violência são diferentes. Segundo um
grande estudo que fiz no Unicef (Fundo das
Nações Unidas para a Infância), na França, cerca de 11% dos estudantes sofrem bullying, e 5% deles de uma forma severa.
A solução está na gestão
da escola?
Debarbieux Sim. O
modo como uma escola é gerenciada e a atenção que os adultos dão aobullying têm
um grande impacto sobre os efeitos dessa violência. Sabe-se que há uma ligação
muito forte entre a qualidade do clima e das relações pessoais na escola e a
ocorrência de casos desse tipo.
Existem países em que o bullying não se manifesta na escola?
Debarbieux Não.
Entretanto os casos nos países do norte da Europa diminuíram em mais da metade
em relação à média europeia desde que os governos assumiram um papel-chave para
lutar contra isso, há mais de 20 anos. O Reino Unido também seguiu a mesma
linha de adoção de políticas de prevenção. Mesmo assim, não podemos nos dar o
direito de parar de evoluir. O fato de tratarmos violências menores não
significa que estejamos lidando com uma coisa pequena e sem importância. As
pesquisas mostram que, em termos de atos mais graves, como os que envolvem
matanças nos Estados Unidos, 75% dos alunos que foram à escola armados e
mataram colegas eram vítimas de bullying.
Como recuperar os envolvidos com o bullying?
Debarbieux É preciso mostrar
ao jovem agressor as consequências do que faz. Frequentemente, trata-se de um
garoto inofensivo, que quer se afirmar e, ao se colocar nesse papel, sente-se
mais forte que os demais. Por isso também é importante desenvolver a empatia, a
capacidade de se colocar no lugar do outro, a conscientização de que esse tipo
de situação é prejudicial para todos - e isso não se faz apenas com eventuais
lições de moral. A pessoa violenta sempre pensa que a culpa é da vítima. E a
simples punição para que isso não se repita não é uma solução, inclusive porque
muitas vezes piora o problema e pode até gerar atos de vingança.
Medidas de segurança e
repressão ajudam nesse processo?
Debarbieux Há uma
série de providências espetaculares contra o bullying: instalação de câmeras de segurança, reforço do
policiamento e implantação de medidas repressivas. Mas nenhuma ação pontual
funciona de verdade. O fenômeno precisa ser tratado no longuíssimo prazo e a
solução-milagre não existe. Há muitas experiências positivas sobre a justiça
restaurativa e punições construtivas. Ao mesmo tempo que precisamos cuidar da
vítima e reconstruir a sua identidade, devemos reparar o agressor: não apenas
por caridade, mas por necessidade.
E quanto ao cyberbullying, que na maioria das vezes tem
um agressor oculto?
Debarbieux No cyberbullying, a violência começa no horário das aulas e
continua durante o restante do dia e a noite inteira. O aluno recebe uma
metralhada de mensagens no celular, em seu e-mail ou nas redes sociais, como o
Facebook. É muito difícil quebrar a lógica de que insultar o colega na internet
é engraçado. E não há outra solução a não ser intensificar a colaboração
existente entre a escola e a família.
A violência física nas
escolas é caso de polícia ou assunto para ser resolvido internamente?
Debarbieux Depende
de como se considera a polícia. Se os policiais são simplesmente brutamontes
que estão atrás de bandidos, esqueça. É preciso lembrar que a maioria das
violências é pequena e não motiva uma intervenção externa. Apenas com
repressão, não diminuiremos as taxas de violência, já que o objetivo não é
punir culpados, mas evitar que haja vítimas. Por outro lado, se consideramos a
polícia uma aliada no trabalho educacional, pode ser extremamente interessante.
Quando estive no Brasil, acompanhei a ação extraordinária das brigadas
escolares em Brasília. Havia jovens policiais mulheres que mostravam de forma
clara o que era a lei.
Qual sua visão sobre o
quadro da violência escolar no Brasil?
Debarbieux A
pesquisa da Unesco que fizemos aí foi muito interessante. Ela mostrou que há
violência e problemas. Entretanto, se comparamos esses resultados com os de
outros países, eles foram bastante favoráveis. Nós pesquisamos alunos de 10 a
16 anos em escolas públicas de todo o país. A forma como eles veem os
professores é muito positiva. Não romantizo de forma alguma essa situação. Mas
é preciso reconhecer que os professores são muito mais próximos dos alunos do
que em outros locais onde talvez eles sejam mais bem formados, mas não
conseguem estabelecer essa relação. Em zonas onde a violência faz parte do
cotidiano, como na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, as escolas se
mantinham, dentro do possível, protegidas. Há fatores paternalistas, como o
fato de o filho do principal traficante estudar ali. Mas, em geral, no Brasil,
a escola é um capital social. Ela faz parte da comunidade e, por isso, consegue
se proteger parcialmente do que há de ruim nela. Em São Paulo, por exemplo, há
escolas com grades e policiais na entrada, mas elas permanecem de portas
abertas para a comunidade participar de atividades.
Após o caso de Realengo,
muito se falou sobre o motivo que levou o agressor a escolher uma escola para
atacar. Que aprendizados podemos extrair desse episódio?
Debarbieux Isso é
uma prova de que é preciso tratar as pequenas violências do cotidiano para
evitar as mais graves. Massacres escolares como esse não acontecem todos os
dias. No mundo, deve ter havido talvez uns 30 desde 1960. Não é por isso que
vamos colocar detectores de metais, policiais e câmeras em toda escola. Em
primeiro lugar, custa absurdamente caro. E, em segundo, já sabemos que seria
inútil. Na França, uma reflexão emergiu no ano passado no âmbito político
porque, em um estabelecimento considerado um dos mais seguros do país, um aluno
morreu esfaqueado por outro. O ministro da Educação então notou que a polícia
na porta e as imagens de vídeos não serviram para nada. Percebeu-se que só um
trabalho complexo e no longo prazo teria efeitos. Foi a primeira vez que
convenci um governo a preparar pessoas para formar os professores a fim de que
eles pudessem enfrentar a violência nas escolas. Isso já é um começo.
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