"Artigo de Helena Marujo, psicóloga professora universitária no ISCSP/UL, que saiu no Jornal Publico de 23.4.2014, com o título: "Felicidade Pública (9): manifesto contra a instrumentalização da felicidade laboral":
That is happiness, to be dissolved into something complete and great”(Isso é a felicidade, a ser dissolvida em algo completo e grandioso), Willa CatherMea culpa.
Tendo
sido uma das primeiras pessoas que começou em Portugal a falar da importância
da felicidade no contexto laboral, sinto-me inquieta com o rumo que pode
trazer a bandeira de uma abordagem positiva nas organizações em tempo de
desertos.
Guiava-me
na altura a vontade de criar lugares de vida mais humanos, de pensar em formas
sociais democráticas mais límpidas e evoluídas, em locais de produção de bens e
serviços mais vocacionados ao bem-comum. Queria ver mais, no espírito do
próprio tempo, do que outra leva de emigração em busca de dignidade, decência e
alimento; queria humildemente ajudar a construir um mapa moral e dialogante nas
empresas privadas ou públicas, nas fábricas, nos serviços, nos campos, nas
escolas, nos hospitais.
Hoje,
vejo o tema da felicidade a entrar nas organizações, e devia sentir-me, no
mínimo... feliz. Mas antevejo o risco.
Quantas
vezes configurada em não mais do que um rol de práticas assentes num
irrefletido e vago sentimento moral, numa superficial alegria, e em mais uma
forma de instrumentalização de quem trabalha – um novo caminho para maior
produtividade, uma outra forma de medir, controlar e influenciar a
satisfação, uma repetição triste de formas manipuladoras de controlo – a
possibilidade da felicidade está ainda mais em perigo.
Quando
sonhei trazer da investigação para o dia-a-dia dos empregados esse horizonte da
felicidade idealizei formas de trabalho, liderança, comunhão relacional e
ambiente laboral com verdadeiro compromisso, porque resultado de justiça
interna e equidade externa, uma felicidade tecida em redes de pessoas
solidárias, compassivas, íntegras e coerentes, com espaços e tempos de
autodeterminação e autonomia, sentindo-se competentes e valorizadas,
construtoras de coletivos e não apenas de egoístas individualizações, numa
clara expressão de evolução da sabedoria conjunta e de uma gramática mista de
hedonismo e sentido. Invoquei locais de trabalho que fossem verdadeiras
cartografias de pequenas virtudes diárias, desde o CEO ao segurança, do
trabalhador docall center ao educador no infantário.
Nunca
concebi uma coexistência que convidasse à uniformidade, ao opressivo e
falaciosamente entusiasmado, sempre externamente motivado, e muito menos
desejei uma felicidade que fosse descontextualizada.
Soube
pela pena de Robert Skidelsky, num artigo deste mês de Abril do The
New York Review of Books, que há algum tempo as hospedeiras de
bordo de uma companhia de aviação norte-americana tinham ameaçado fazer uma
“greve de sorrisos”, em resposta às múltiplas tentativas da entidade patronal
para aumentar ao limite a eficácia e rapidez do seu trabalho. E relembrei o
taylorismo, as prisões circulares de controlo permanente pensadas por Bentham –
os panóticos, ainda hoje identificáveis – e a forma robótica e automatizada
como, em consequência hoje, ainda e de novo, concebemos o trabalho.
Faço
por isso objecção de consciência a todos os que, ao pegar nas novas modas, como
parece estar a tornar-se a da felicidade no trabalho, ao inteligentemente
perceberem as vantagens desta nova linguagem, a desvirtualizam e desvitalizam,
usando-a para trazer as pessoas de volta à submissão, à intimidação, desta vez
com propostas disfarçadas de cordeiro, aumentando a descrença em salvações cada
vez mais improváveis.
Se
tratamos os trabalhadores como máquinas não fiáveis, das quais desconfiamos, e
que são substituíveis e meros objetos de produção; se usamos a intimidação para
os levar ao limite, e os privarmos da possibilidade de exercer as suas
competências e de se educarem e formarem melhor, enquanto lhes negamos a justa
e harmoniosa recompensa, entramos em decomposição social, e namoramos o pior do
passado e o mais podre da lógica económica: pessoas e locais frios, calculistas
e degradantes. Ficamos perante uma nova variação corporativa da dominação,
especialmente arrepiante na semana em que celebramos 40 anos do 25 de Abril,
que nos permitiu sonhar sermos juntos capazes de práticas democráticas e de uma
cidadania resplandecente, com responsabilidade e vigilância.
A
felicidade não pode ser o novo endoutrinamento, mais uma floresta do efémero,
que seduz pelo superficial, corroendo o vital, uma cortina que esconde o pior
do velho império; não pode ser o riso falso ou demoníaco que eclipsa a
respeitabilidade ou esconde falsas razões, nem uma proposta que corteja a
injustiça. Não podemos nunca permitir as atuais desvertebrações dos
trabalhadores para manterem o trabalho, nem novas escravidões, novos medos,
novos silêncios, novas censuras, criados pela insegurança e vulnerabilidade
social, em nenhum local onde se trabalhe, mas ainda mais em espaços de trabalho
onde se fala da importância da felicidade dos empregados. Não podemos ceder às
graves e mentirosas inconsistências.
Há
semanas, um aluno-trabalhador partilhava connosco numa aula que no seu emprego
era proibido falar sobre quanto cada um ganha; se o fizerem, a punição será o
despedimento. Algo está profundamente mal quando há temas tabus, que impedem a
comunicação, aumentam a desconfiança e limitam a profundidade e espontaneidade
das relações. Por isso, apoio o desligar emocional, tal como o propõe Robert
Sutton, quando os ambientes laborais são tóxicos, desligar que deverá
substituir o convite a outras modas como a mindfulness ou a imaginação positiva/daydreaming, que
excelentes em si mesmos, poderão levar a abismos dogmatizantes se o contexto
for maléfico e houver elevadas quotas de frustração e indignidade
coletivas. Aí, não deverá haver lugar a elevado comprometimento nem
paixão ao que se faz, nem a alegria imposta ou sorrisos obrigatórios e hipócritas,
mas sim a formas múltiplas e lúcidas de critica e mudança.
Precisamos
de felicidades comprometidas e eloquentes, que levem as vidas dos trabalhadores
a correrem como seda, que permitam transgressões ao mal e conjunturas de
diálogo, e que se promovam e elevem meramente quando os contextos e as
lideranças são equitativas, íntegras, benevolentes e virtuosas.
Como
dizia o filosofo russo Pyotr Chaadayev, “Não aprendi a amar a minha pátria com
os olhos vendados e a cabeça inclinada.” Não aprenderemos a amar o trabalho e a
dedicar-nos a ele de forma verdadeiramente produtiva se nos quiserem de
joelhos, silenciados, surdos e cegos, e insensíveis ao fedor do mal. Como
investigadora da felicidade, tenho a obrigação também de ser parte da
consciência intelectual; e o dever do intelectual, esse luxo dos dias de hoje,
é – dizia-o o sociólogo Stanislaw Ossowski já nos anos 1960, pensar de uma
maneira desobediente perante os cataclismos civis.
Não
deixarei de lutar pela felicidade publica. É talvez uma meta de vida. Mas ou a
felicidade rima com dignidade, ou é uma ópera bufa."
Helena Marujo é
professora universitária no ISCSP/UL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.
Leituras:
Skidelsky, R. (2014). The programmed pospect before us,
The New Your Review of Books, n. 23, 3 de Abril, pp. 35-37.
Sutton, R. (2007). The
No Asshole Rule: Building a Civilized Workplace and Surviving One That Isn't.
New York:
Warner Business Books.
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