hoje tratamos cada vez menos doenças e mais mal estar
“em um mundo que valoriza tanto a atenção, não estaríamos podando a criatividade sobre outras habilidades, como as artísticas?”, questionou o psiquiatra fernando ramos durante o café filosófico cpfl sobre transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
“os diagnósticos dependem da aplicação rigorosa de critérios psiquiátricos. mas na clínica não existe mundo neutro”. a afirmação foi feita pelo psiquiatra da infância e adolescência fernando ramos durante o café filosófico cpfl sobre “tdah: diagnóstico positivamente falso ou falsamente positivo?”
no debate, parte do módulo “medicalização fora do controle”, ramos relacionou o aumento dos diagnósticos de transtornos como déficit de atenção e hiperatividade com a pressão de uma ideia “normalidade” sobre as famílias e os psiquiatras. “as pessoas hoje chegam à clínica com pedido de tratamento medicamentoso. a pressão influencia a decisão do psiquiatra. isso explica o aumento dos diagnósticos falso positivos, quando a pessoa não tem aquela patologia.”
em sua apresentação, o psiquiatra afirmou que o termo “medicalização” ganhou uma conotação ofensiva nos dias atuais, mas não é um fenômeno recente. “a medicalização atinge a psiquiatria como atingiu outras áreas da medicina. a exemplo de remédios para hipertensão”, comparou. “no caso da hipertensão, o tratamento e os cuidados são relativos à propensão de enfermidades, mas não é uma patologia.”
o fenômeno da medicalização, segundo ramos, é um fenômeno do mundo pós-guerra, quando o estado de bem-estar social deu aos governos a responsabilidade de cuidar da saúde da sociedade. “hoje, no mundo do capitalismo pós-industrial, o estado não é capaz de oferecer proteção aos cidadãos. por definição, a falta de saúde não é a presença de uma doença, mas qualquer mal estar físico e mental. isso muda a abrangência do tratamento, e cria um mercado”, afirmou. “tratamos, portanto, cada vez menos doenças, e mais mal estar.”
nesse contexto, “se temos uma tecnologia eficaz para corrigir desvios ou desvantagens, como nos casos de transtornos mentais, isso passa a definir o diagnóstico”. para ele, é importante ter em mente que o ideal de bem-estar pleno, da forma como é definido, é um conceito inalcançável.
segundo ramos, o problema exige duas discussões. uma, definir quem tem o poder de aplicar diagnósticos; a outra, sobre como é pensada a ideia dos diagnósticos. “ao apresentar um desvio, a pessoa apresenta sofrimento ou perda de capacidade. mas não é uma patologia”, frisou.
ainda assim, o número de pessoas medicadas em razão de transtornos como déficit de atenção é cada vez maior. em alguns lugares, segundo o palestrante, a prevalência de crianças com tdah é de 10% da população. “hoje existem muitos especialistas em tdah, mas com pouca vivência de outras situações psicopatológicas. há crianças medicadas que não preenchem o diagnóstico de tdah e nem de outros transtornos mentais. são só mais impulsivas ou desatentas.” segundo ele, as pessoas não vão ter nunca as mesmas capacidades de concentração. “as pessoas têm temperamentos. em um mundo que valoriza tanto a atenção, não estaríamos podando a criatividade para outras habilidades, como as artísticas?”
ramos chamou a atenção para o fato de que quem recorre à ritalina para melhorar o desempenho escolar, muitas vezes, não são pessoas mal informadas. “pelo contrário”, disse. ele citou exemplos de pessoas que tomam medicamentos para missões pontuais, como passar na prova – o que exige uma análise ética sobre a conduta de quem fornece a receita médica.
“hoje em dia os pais me apresentam uma lista de reclamações dos filhos e eu pergunto: ok, mas o que eles têm de bom?” e, ao comentar a pressão sobre os pais para que os filhos não “fracassem”, encerrou: “é importante mostrar que o ‘fracasso’ do paciente é o fracasso da sociedade contemporânea”.
retirado de http://www.cpflcultura.com.br/
Sem comentários:
Enviar um comentário